terça-feira, 30 de outubro de 2012

a primeira vez


A primeira vez é sempre complicada. Aquele divisor de era, antes e depois de ter passado por aquilo, antes e depois de ter feito aquilo, antes e depois de ter tomado aquela decisão.
E a decisão quase nem é nossa. Somos empurrados pelos costumes e cultura da nossa sociedade a tomar a decisão, querendo ou não. Mas sempre queremos, eu pelo menos quis. Sonhava com aquilo.
Difícil é saber quando e como fazer. Saber que já se é maduro suficiente para tal definidora decisão.
Olhando agora, depois de tanto tempo, fica fácil perceber, mas no auge dos meus 13 anos, vivendo aquela apreensão toda, não era.
Por sorte (ou azar, não sei) a decisão fugiu das minhas mãos. Porém, a mim coube a parte mais tensa. Como fazer?
Ajo de maneira rápida, ou lentamente? Pego e vou fazendo os movimentos ou vou na valsa, devagar, delineando cada ação?
Difícil.
E se for desastroso? Tá certo que poderia e seria refeito muitas outras vezes e que o aperfeiçoamento surgiria daí, mas a primeira vez é a que você leva para toda a vida, não é?
Para diminuir minha tensão, ensaiava muitas vezes sozinho, tomando o cuidado para ninguém ver. Algumas vezes fazia rápido, em outras devagar e buscava tirar o melhor proveito de cada uma.
Todavia, por mais que os ensaios ajudassem, era lá, na hora, de frente pra ela que a coisa toda iria se definir de forma definitiva.
Me lembro bem desse dia, era maio de 1993, em São Bernardo do Campo. Não fazia muito calor, mas eu suava. Estava nervoso.
Agora não tinha como recuar, a decisão estava tomada e era tudo ou nada. Ou melhor, era tudo, nada deixou de ser opção.
Enxuguei o suor das mãos na calça jeans, respirei fundo tentando não demonstrar nervosismo na frente dela, peguei o instrumento e fui. Nem rápido demais nem demasiado lento, fui tentando controlar a situação e fazendo meu melhor, e pronto.
Lá estava eu, sorridente frente à escrituraria com minha primeira assinatura oficial, no RG.
Um pouco tremida mas bacana. 
Hoje, aos 31, a aperfeiçoei e até criei uma rubrica, mas ainda guardo na lembrança e na gaveta o RG com minha primeira vez. 

evandro l! melo


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

jornal, balas e memórias


Há  dois dias comecei a receber em casa o jornal Estadão. Assim do nada. Não fiz assinatura, tampouco fui comunicado que é uma ação de marketing. 
Não sei portanto se trata-se de uma degustação ou se o entregador está me deixando feliz ao mesmo tempo que deixa algum vizinho fulo da vida.

Fato é que eu que nunca fui leitor de jornal, estou pegando gosto pela coisa. Começo o dia diferente. Levo para o trabalho me sentindo como um grande executivo, todo importante, pronto para apertar um botão no telefone e solicitar um café para a secretária enquanto tomo importantes decisões que definirão os rumos da minha empresa.
Na prática, do jeito que o jornal chega, levo embora, mal leio as manchetes principais.

Em casa sim posso desfrutar de tanto conhecimento carregado no malcheiroso papel. Cheiro aliás que foi muitas vezes usado por mim como desculpa para me livrar dos chatos vendedores de assinaturas por telefone.
- Eu tenho rinite moça, o jornal me ataca a alergia.
Não era de todo uma mentira, talvez um exagero. Mas a tática era necessária.

Esse simples acontecimento, receber jornal em casa, me despertou lembranças da minha infância, onde me lembro por exemplo de ter tido aula de leitura de jornal na escola.
Era a 4a série do primeiro grau, o professor passara o dever de casa para que todos levassem um jornal para a próxima aula. Passei na minha avó Lola e peguei o Diário do Grande ABC do dia anterior para levar para a escola. 
Na aula aprendemos como os jornais dividem os assuntos em cadernos, o que são manchetes, como localizar matérias e como manejar o jornal. Essa última era para mim a mais interessante das lições.
O tamanho da folha, A0, faz do ato de ler jornal um exercício de destreza.
A lição era, abrir o jornal, escolher a notícia a ser lida, dobrar a folha ao meio, da direita para a esquerda e depois novamente ao meio, de cima pra baixo, deixando a matéria escolhida à mostra. Uma chacoalhada no papel era sempre útil para ajeitá-lo.

Coisa que minha avó, dona Lola, mãe da minha mãe e de mais 9, fazia sem ter tido aula nenhuma.
Me lembro de sempre passar na casa da Vó Lola, que era diferente de qualquer outro lugar (antigamente casas de avó eram especialmente diferentes) e encontrá-la sentada no chão com o jornal devidamente aberto à sua frente.
A casa da Vó era sempre assim, um pouco mais fria que a minha, um pouco menos iluminada e um cheirinho único de casa de vó. Na sala os móveis antigos desafiavam os novos designs e se mantinham clássicos. Destaque para a arca. Uma grande estante de madeira escura em estilo colonial onde em uma das portas ficavam as balas de hortelã.

Até o jeito dela sentar-se no chão era especial. Acostumada a sempre usar saias, sentava-se sobre os joelhos, deixando o corpo cair levemente de lado e repousar. Óculos de armação grossa na cor marrom, o cabelo penteado formando um coque e o dedo a ser lambido para trocar as páginas. Essa era a figura da Vó Lola.

Ela dobrava minuciosamente a grande folha até que ficasse pequena e manuseável.
Depois de ler toda a página, reforçava o vinco da dobra de maneira que as pontas ficavam todas alinhadas e então colocava na pilha das páginas já lidas.
Não me lembro quais eram seus assuntos preferidos, mas me recordo bem que a leitura era diária e respeitava aquele ritual.

Depois de ganhar balas de hortelã, eu voltava feliz para casa, levando comigo balas, carinho e memórias.

***
evandro l! melo
@evandrolmelo
foto de L. Fernando Lopes (um dos 10 filhos da Vó Lola)


P.S.: Depois de três dias parei de receber o jornal em casa. Acho que algum vizinho reclamou que estava há dias sem receber seu jornal e as coisas foram ajeitadas.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

o que é a vida





Imagino a vida como um grande tudo. 
Uma imensa quantidade de tudo sem forma definida, sem voz e sem calor, tendendo ser nada.
Um grande espírito ou uma alma. Alma, melhor alma. Talvez a junção de todas elas, que em si e por si só, não basta.
É preciso bastar para ser.
Por ser infinita, não habita em um mundo forjado em tempo e espaço, por nele não caber.
É preciso caber para ser.
Como uma enorme porção de água, procura frascos, ainda que pequenos e frágeis, para neles se conter e deixar de ser uma massa única de tudo e se fracionar em pequenas partes administráveis.
É preciso se conter para ser.
Os frascos ao que parecem são escolhidos a esmo. De diversas formas e decorações, uns bojudos e baixos, outros finos e compridos, tem ainda os finos e baixos, compridos e largos, marrom, amarelo, branco, vermelho...
Ao passo que neles passa a conter uma fração de si, a vida o transforma, o torna raro. Cada frasco passa a ser único, ainda que parecidos e condicionados de formas semelhantes.
São frascos frágeis que carregam uma fração dessa imensa vida.
Tamanho presente da vida se dar assim, faz com que ao mesmo tempo frascos festejem graça e outros temam responsabilidade. De fato é uma carga valiosa demais para simples frascos de vidro carregarem. Vez ou outra derrubam e desperdiçam vida pelo caminho. Outros de tanto esmero - ou preguiça - deixam o fluido de vida parado dentro de si e ela perde o gosto.
Inevitavelmente quebram-se. Cedo ou tarde - na maioria das vezes tarde - derramam ao chão sua porção de vida e se tornam frascos inúteis, são descartados.
Mas há vida suficiente, que logo escolhe novo frasco para se dividir e voltar a ser.
É preciso dividir para ser.

evandro l! melo