Não sabemos lidar com a nossa condição humana, limitada, inadequada, e sempre ambígua. Procuramos nos entender e nos perdemos. Por que nos inquietamos com o vício e nos encantamos com a virtude? De onde arrancamos a idéia do certo e do errado?
Em Serra Leoa, milícias rivais se enfrentam há décadas decepando mãos, braços e pernas de mulheres, crianças e idosos. Por quê? A panela de pressão étnica explodiu entre Tutsis e Hutus em Ruanda na década de 1990; em 45 dias, cerca de oitocentas mil pessoas foram chacinadas. Em 2008, a barbárie de Rauanda se transferiu para o vizinho Congo com as mesmas mortes absurdas. Impotentes, não reagimos. A invasão do Iraque pelo governo Bush custou no mínimo 3 trilhões de dólares. Calcula-se que tenha matado mais de um milhão e duzentos mil civis – numa população de 29 milhões – entre março de 2003 a agosto de 2007. Ninguém será responsabilizado?
Diante desses horrores, ouve-se um simplismo: “O ser humano é inviável”. Despautério. A história tem tanta, mas tanta, carnificina que se fôssemos mesmo inviáveis, já teríamos desaparecido como os dinossáuros. Nos reiventamos nas tragédias, ressurgimos das cinzas. A força do bem, embora frágil, ainda é maior que o poder do mal. Por isso, continuamos por aqui.
A humanidade oscila entre extremos e o pêndulo nunca desacelera. Hora desce à perversidade mais profunda, hora atinge o topo da escala da virtude. As violências topam com as contrapartidas humanitárias; os cinismos, com os engajamentos comunitários; as corrupções políticas, com as mobilizações populares. Negros ainda sofrem preconceitos, mas numa escala geometricamente inferior que duzentos anos atrás. Depois de muita luta, mulheres conquistaram o direito de votar e governar.
Porém, agudizar as inadequações humanas é um jeito bom de fugir do dever de construir a história. Ao considerar a humanidade irremediavelmente perversa , o mal se torna inevitável. Se corpo, terra e mundo são intrinsecamente ruins e nossa existência, uma masmorra fétida que aprisiona o espírito, fica fácil explicar a maldade. Basta afirmar que os seres humanos nascem desfigurados e contaminados com uma lepra existencial chamada de pecado. Herdeiros de monstruosidades, somos merecedores de castigo eterno desde que nascemos.
Esse mecanismo de fuga é poderoso, usado pela filosofia e teologia muitas vezes (Agostinho, Anselmo, Pascal). Mas, quanto mais íngrime se considerar a ladeira da decadência humana, menor a responsabilidade.
Com a inexorabilidade do mal, justifica-se qualquer ação. “Nascemos assim, somos assim; cachorro não late para ser cachorro; late porque é cachorro; as pessoas não são pecadoras porque pecam, pecam porque são pecadoras”. Com esses pressupostos, o ódio se torna inevitável e o bem, complicadíssimo. É confortável afirmar que o código genético do espírito padece de uma síndrome que perpetua o pecado.
Noite passada tive um sonho em que eu me rodeava de pessoas parecidas comigo na beira de um precipício. Todos falávamos juntos, repetindo desculpas e nos desmerecendo. Eu projetava na minha índole, raivas e viganças. Na ânsia de justificar petulâncias, transformava ancestrais em bodes expiatórios. Chegava a responsabilizar um bisavô pelo vício deselegante de palitar os dentes na mesa.
Para não me encarar, tentava desmerecer Adão e Eva. Procurava, transformá-los em precursores da Gestapo, ideólogos do garrote inquisitorial e pistoleiros profissionais. Dizia que a Árvore Proibida me aleijara. Como não conseguira lidar com a minha própria maldade, projetava em Deus “A Grande Culpa”. Eu falava com zanga: “Afinal de contas, não pedi para nascer deformado; não tenho como reverter a natureza que herdei; não posso fazer o bem”.
Murmurava: “melhor cruzar os braços e deixar rolar para ver como é que fica”. Neste momento, alguém me acenou do outro lado do abismo. De mangas arregaçadas e inconformado, gritava: “A maldade não é sina”. Por três vezes, repetiu: “É possível frear o avanço da morte; vale a pena lutar”. Ele tinha cicatrizes nas duas mãos. De repente, cobrou a minha atenção para uma lenda talmúdica: “Em cada cada geração, vivem 36 pessoas justas que são o alicerce do mundo. Eles são os “santos ocultos”. Ninguém os conhece ou poderá elogiá-los, mas é graças às suas ações anônimas que a terra se torna um lugar mais habitável e decente. Pare de justificar-se, una-se a eles”.
Acordei dizendo que vou tentar.
Ricardo Gondim
Soli Deo Gloria
Em Serra Leoa, milícias rivais se enfrentam há décadas decepando mãos, braços e pernas de mulheres, crianças e idosos. Por quê? A panela de pressão étnica explodiu entre Tutsis e Hutus em Ruanda na década de 1990; em 45 dias, cerca de oitocentas mil pessoas foram chacinadas. Em 2008, a barbárie de Rauanda se transferiu para o vizinho Congo com as mesmas mortes absurdas. Impotentes, não reagimos. A invasão do Iraque pelo governo Bush custou no mínimo 3 trilhões de dólares. Calcula-se que tenha matado mais de um milhão e duzentos mil civis – numa população de 29 milhões – entre março de 2003 a agosto de 2007. Ninguém será responsabilizado?
Diante desses horrores, ouve-se um simplismo: “O ser humano é inviável”. Despautério. A história tem tanta, mas tanta, carnificina que se fôssemos mesmo inviáveis, já teríamos desaparecido como os dinossáuros. Nos reiventamos nas tragédias, ressurgimos das cinzas. A força do bem, embora frágil, ainda é maior que o poder do mal. Por isso, continuamos por aqui.
A humanidade oscila entre extremos e o pêndulo nunca desacelera. Hora desce à perversidade mais profunda, hora atinge o topo da escala da virtude. As violências topam com as contrapartidas humanitárias; os cinismos, com os engajamentos comunitários; as corrupções políticas, com as mobilizações populares. Negros ainda sofrem preconceitos, mas numa escala geometricamente inferior que duzentos anos atrás. Depois de muita luta, mulheres conquistaram o direito de votar e governar.
Porém, agudizar as inadequações humanas é um jeito bom de fugir do dever de construir a história. Ao considerar a humanidade irremediavelmente perversa , o mal se torna inevitável. Se corpo, terra e mundo são intrinsecamente ruins e nossa existência, uma masmorra fétida que aprisiona o espírito, fica fácil explicar a maldade. Basta afirmar que os seres humanos nascem desfigurados e contaminados com uma lepra existencial chamada de pecado. Herdeiros de monstruosidades, somos merecedores de castigo eterno desde que nascemos.
Esse mecanismo de fuga é poderoso, usado pela filosofia e teologia muitas vezes (Agostinho, Anselmo, Pascal). Mas, quanto mais íngrime se considerar a ladeira da decadência humana, menor a responsabilidade.
Com a inexorabilidade do mal, justifica-se qualquer ação. “Nascemos assim, somos assim; cachorro não late para ser cachorro; late porque é cachorro; as pessoas não são pecadoras porque pecam, pecam porque são pecadoras”. Com esses pressupostos, o ódio se torna inevitável e o bem, complicadíssimo. É confortável afirmar que o código genético do espírito padece de uma síndrome que perpetua o pecado.
Noite passada tive um sonho em que eu me rodeava de pessoas parecidas comigo na beira de um precipício. Todos falávamos juntos, repetindo desculpas e nos desmerecendo. Eu projetava na minha índole, raivas e viganças. Na ânsia de justificar petulâncias, transformava ancestrais em bodes expiatórios. Chegava a responsabilizar um bisavô pelo vício deselegante de palitar os dentes na mesa.
Para não me encarar, tentava desmerecer Adão e Eva. Procurava, transformá-los em precursores da Gestapo, ideólogos do garrote inquisitorial e pistoleiros profissionais. Dizia que a Árvore Proibida me aleijara. Como não conseguira lidar com a minha própria maldade, projetava em Deus “A Grande Culpa”. Eu falava com zanga: “Afinal de contas, não pedi para nascer deformado; não tenho como reverter a natureza que herdei; não posso fazer o bem”.
Murmurava: “melhor cruzar os braços e deixar rolar para ver como é que fica”. Neste momento, alguém me acenou do outro lado do abismo. De mangas arregaçadas e inconformado, gritava: “A maldade não é sina”. Por três vezes, repetiu: “É possível frear o avanço da morte; vale a pena lutar”. Ele tinha cicatrizes nas duas mãos. De repente, cobrou a minha atenção para uma lenda talmúdica: “Em cada cada geração, vivem 36 pessoas justas que são o alicerce do mundo. Eles são os “santos ocultos”. Ninguém os conhece ou poderá elogiá-los, mas é graças às suas ações anônimas que a terra se torna um lugar mais habitável e decente. Pare de justificar-se, una-se a eles”.
Acordei dizendo que vou tentar.
Ricardo Gondim
Soli Deo Gloria
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