segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Cabra da peste

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Esses dias me disseram, a respeito de um projeto que estava desenvolvendo, que Deus levaria as pessoas certas a participar. Compreendo. O problema é que Deus não costuma levar em consideração o fato de que, se as pessoas certas, naquele caso, fossem poucas, eu teria que arcar com um pequeno rombo financeiro. Ele é meio desligado nessas miudezas monetárias. Afinal de contas é dono de todo ouro e prata. Não tem com que se preocupar. Nós é que precisamos desse demônio de papel para sobreviver.

Pensando nisso é que percebi o caminho sutil que está levando o tinhoso a assumir sua forma definitiva nesse mundinho cão.

Aquele espírito de luz, não muito tempo depois de nos aparecer como serpente, abandonou a pobrezinha rastejante e assumiu a forma de metal pesado. Ouro, prata, bronze. Era preciso centenas de escravos para carregar, em carruagens reforçadas, um bom pagamento para casa. Com o passar dos séculos, transformou-se em níquel, mais leve e sutil. Uma boa quantia poderia ser carregada em uma maleta. Lentamente, como o inseto de Kafka, foi afinando até a leveza e versatilidade do papel, e coube em bolsos e cuecas. E vem seguindo seu inacreditável processo de desmaterialização, na intenção maldosa de tomar de novo a forma original da virtualidade, do espírito. Estará, logo, logo, instalado definitivamente dentro de nós.

Não é a toa que o Filho do Homem aconselhou-nos ao desapego total. Não é a toa que chamou o dinheiro pelo seu verdadeiro nome. Mamom. Não é a toa que nos deu como modelo os passarinhos e lírios.

Mas essa insuportável passagem dos evangelhos, talvez uma das mais desprezadas no cristianismo contemporâneo, é quase sempre vista de uma perspectiva, na melhor das hipóteses, parcial. Na esmagadora maioria das vezes, aqueles que não fogem desse texto intragável costumam usá-lo como exemplo do inescapável cuidado de Deus - aquele cuidado que vai fazer a adesão àquele projeto ser certamente suficiente e o rombo no orçamento ser evitado.

Evidentemente não é isso que o texto diz.

O surpreendente com os lírios é que mesmo que muitos floresçam, enfeitem e perfumem o campo, uma enorme quantidade deles morre seca e esturricada na estiagem ou afogada na enchente. Isso quando alguma cabra maldita não pisoteia ou, pior, mata o lírio sufocado em seu esterco. E pássaros, além de serem devorados por uma porção de predadores, são absolutamente incapazes de enxergar a parede de vidro que lhes partirá o pescoço. Ainda assim, por mais absurdo que nos pareça, todos estão sob o cuidado de Deus, segundo o primogênito de Maria.

O negócio é tocar a vida e torcer para nenhuma cabra passar por perto e para que todas as janelas permaneçam abertas.

Um comentário:

Tuco Egg disse...

Legal Evandro. Obrigado pela citação. Abraço.