segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Além da submissão (parte 4 de 6)

A morte da moralidade

A moralidade dos fariseus ainda prospera entre nós. Dentre os líderes intelectuais do nosso povo muitos sentem-se horrorizados diante da noção de que uma pessoa é capaz de fazer o que é bom apenas se sua vontade estiver direcionada à busca da verdade da forma como ela mesmo a percebe. Afirmam que, ao contrário, carecemos de mandamentos “objetivos” que nos digam exatamente o que fazer.

Se com isso eles quisessem dizer que coisas como lei, tradição e autoridade pessoal são em geral necessárias, estariam certos. A verdadeira opinião desses líderes do nosso povo, no entanto, é que obedecer a essas autoridades é em si mesmo fazer o que é bom e – pior ainda – que chegamos ao conhecimento do que é bom deduzindo-o a partir das leis impressas sobre nós pela natureza e pela história. Agindo assim esses guias cegos de cegos declaram não ter olhos para verem eles mesmos o que é bom, embora estejam cheios de honesto zelo, de uma natureza não muito diversa do zelo os fariseus, seus protótipos.

É apenas observando como Jesus vai à raiz da insinceridade e da indolência dessa concepção de moralidade que veremos claramente o significado de suas idéias morais em sua influência sobre nós mesmos.

Os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

No curso de sua incansável guerra contra o auto-engano dos homens virtuosos ao redor de si, Jesus revela que somos capazes de querer uma única coisa de cada vez. Por mais que nos esforcemos, não conseguimos servir a dois senhores. Da mesma forma que o olho deve ser “simples” para dar ao organismo a luz necessária, o homem interior estará na escuridão a não ser que concentre cada impulso seu numa única direção, na busca de um único alvo.

Será que Jesus considerou que sua missão consistia em revelar aos homens qual deveria ser esse alvo? De modo algum. Ele sabia que a essência da lei era conhecida em todo Israel, os mandamentos de amarmos a Deus e ao próximo. Sabia também que não era difícil fazer cada pessoa reconhecer quem é o seu próximo, de modo a perceber que quando está sendo cruel com o outro está condenando simultaneamente a si mesma. O objetivo de Jesus era outro, demonstrar que por nenhuma palavra externa somos capazes de chegar ao conhecimento do que é bom.

Jesus certamente viveu de maneira única a noção de Deus como expressão última de todas as coisas, como nosso único e necessário bem. Pois para ele o Reino de Deus significava apenas aquele futuro de bem-aventurança cuja condição necessária é que apenas Deus reine dentro de nós. Todas as coisas boas que não exatamente nos levam mais para perto de Deus preparam a nossa destruição. Verdadeira integridade é amor a Deus.

Porém, a partir dessas noções fundamentais a respeito da devoção os homens concluíram que nosso dever supremo é obedecer a vontade tradicional de Deus – conduta pela qual somos expostos a um perigo terrível, visto que conduz a uma forma de devoção fatal a qualquer clareza moral. Pois, dentre os mandamentos transmitidos a nós como expressão da vontade de Deus, haverá sempre em nós a tendência de considerarmos superiores aqueles que deixam claro qual seja nosso dever imediato para com Deus. Conseqüentemente, os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

Isso Jesus encontrou nos defensores da virtude ao redor de si, gente que lutava com grande cuidado a fim de desenvolver e aprimorar as regras transmitidas a eles para o serviço de Deus. Porém aos olhos de Jesus a virtude aparente desse método de servir a Deus transformava em impossibilidade um serviço vivo e vital; ele via nesse método a carcaça ao redor da qual reuniam-se os abutres.

Jesus não dará ouvidos às nossas alegações de que uma obrigação relacionada ao culto nos desobriga de suprir as necessidades de qualquer pessoa pela qual sejamos responsáveis num dado momento. Os profetas já haviam dito que misericórdia é melhor do que sacrifício, mas no tempo de Jesus do zelo dos escribas havia nascido e prosperado um religião cuja vitalidade envolvia a morte da moralidade.

Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)

Fonte: www.baciadasalmas.com.br

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Além da submissão (parte 3 de 6)*

O QUE LHES FALTAVA

Podemos ganhar uma idéia mais clara a respeito da mente de Jesus e da sua pessoa observando a natureza da diferença moral entre ele e os outros ao seu redor. Estaria essa diferença no princípio de que a integridade não é questão de ação exterior mas de disposição interior? Seria essa a natureza da “justiça superior” [à dos fariseus] na direção da qual ele procurava impulsionar os seus discípulos?

Porém, para gente familiarizada com as palavras dos profetas “Este povo honra-me com seus lábios, mas o seu coração está distante de mim” e com a oração “Cria em mim, ó Deus, um coração puro”, essa distinção certamente não pareceria novidade. Com respeito a isso a diferença entre Jesus e os justos da sua nação só poderia ter consistido no grau de precisão com o qual ele aplicava esse princípio, e teria sido essa diligência que lhe dera o direito de chamá-los de hipócritas.

Se, porém, pararmos por aqui, estaremos longe de compreender Jesus na força e na totalidade da sua mente. O que é peculiar no pensamento moral de Jesus é que ele leva esse princípio ainda mais longe, e assim exibe pela primeira vez a sua força completa.

Ele tem profusa satisfação em, como os profetas, atacar a hipocrisia no sentido da deliberada discrepância entre o que se é e o que se aparenta ser; ele também expõe a natureza radical dessa discrepância. Porém Jesus sem dúvida sabia que, no sentido usual do termo, os fariseus não eram hipócritas, prontos como estavam a enfrentar a morte nas mãos dos romanos sempre que a inviolabilidade da lei estava em risco.

No sentido usual do termo, os fariseus não eram hipócritas.

Ele no entanto decidiu claramente que a medonha corrupção da natureza espiritual deles fazia-os merecedores do julgamento do inferno. Ele denunciava-os por prescreverem, deixando de colocar em prática, e por não cumprirem as exigências que eles mesmos haviam imposto sobre os outros. Porém não era por falta de atividade, como comumente se pensa, que os fariseus deixavam quaisquer deveres por cumprir; ao contrário, eram zelosos até o último grau.

O que lhes faltava era aos olhos deles mesmos de pouca importância – algo para o que não tinham tempo, devido à supremamente importante preocupação de cumprir a lei com a maior exatidão possível. Para eles, portanto, não era objeto de preocupação que sua vontade pessoal fosse sincera e íntegra com relação a si mesma, consciente de seu direito eterno. Eles, de fato, buscavam cumprir a lei, mas apenas a fim de se provarem justos, e portanto a fim de obterem algo completamente diferente.

Eles queriam servir a dois senhores – feito que, segundo Jesus, é impossível de realizar por causa da natureza da vontade. Buscando compreender no mais ínfimo detalhe um número enorme de preceitos isolados, os fariseus negligenciavam a questão essencial da lei, a demanda por justiça, misericórdia e fidelidade como meio para uma irmandade genuína.

Não estavam fundamentados na verdade, porque negligenciavam a autenticidade que deve ser capaz de enxergar por si mesma o significado e a justa demanda da lei, descobrindo dessa forma como cumpri-la. Tornavam a lei um fardo terrível de se levar, mas não sentiam eles mesmos o seu peso, porque era fácil para eles satisfazer exigências incompreensíveis, e porque viam que é perfeitamente possível desempenhar e livrar-se de tarefas cujo significado não se compreende. Imaginavam que cumpriam adequadamente a lei, e consideravam-se servos valiosos; enquanto isso, impediam que os conceitos morais da lei entrassem em vigor, por acharem que não valia à pena investigar a verdade que havia neles.

Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)


*Em tempo, a série é dividida em 6 partes e não 5 como havia escrito. Fonte: www.baciadasalmas.com.br

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Além da submissão (part 2 de 5)

Além da submissão

Lutero não superou o mau uso das instruções morais de Jesus, que na Igreja de Roma demonstrara sua força completa e letal. Ele também tomava por certo que o cristão é obrigado, pelo menos, a obedecer cada palavra de Jesus que chegou até nós e não foi expressamente endereçada a um indivíduo em particular, sem considerar se a exigência que ela contém diz realmente respeito a ele mesmo em sua presente circunstância.

Uma obediência dessa natureza é, no entanto, um monstruoso mau uso das palavras de Jesus, e para um cristianismo cujo alvo é habitar o mundo, ela acaba não deixando qualquer escolha além da divisão entre clérigos e leigos, para detrimento moral de ambas as partes. Porém, mesmo que o resultado desse uso das suas palavras fosse a mencionada divisão, não teríamos direito de chamá-lo de abuso se o próprio Jesus demonstrasse tencionar que todos os homens obedecessem cegamente as suas palavras, mesmo sem apreender a verdade que elas contém.

Se tratadas meramente como padrões a serem copiados, as palavras de Jesus separam os homens da verdade, e portanto de Cristo.

Sem dúvida Jesus fez exigências para as quais ele esperava, de todos os seus discípulos, obediência incondicional. Porém ele jamais exigiu que alguém cumprisse suas palavras cegamente e precipitadamente, sem compreendê-las. Em cada caso ele pedia mais do que isso; não meramente submissão, mas a obediência interior de um agente livre. Suas palavras aplicam-se aos que realmente as aceitam, e essa verdadeira aceitação elas conquistam estimulando a tendência à independência que é inerente à vontade.

No coração de cristãos individuais o poder espiritual de Jesus há muito tem suprido o que faltou na ação de Lutero sobre a igreja – isto é, o discernimento moral de que podemos reconhecer Jesus como nosso líder e ao mesmo tempo perceber a iluminadora verdade de palavras que, se tratadas como padrões a serem copiados pefeitamente, separam os homens da verdade, e portanto de Cristo. Uma única palavra de Cristo é capaz de despertar essa compreensão; porém nenhuma palavra específica, nem a soma de todas as suas palavras, é capaz de nos fazer perceber a verdade que há nelas. Isso só pode acontecer se buscamos o próprio Jesus – e por isso não estou querendo dizer nada fantasioso, mas a simples tentativa de compreender a mente da qual procediam essas palavras maravilhosas e terríveis, porém graciosas.

As palavras de Jesus podem ser tabuladas, mas não suas idéias morais; essas só podem ser apreendidas quando as reconhecemos como o resultado de uma Vontade que nada tem de arbitrário, mas é uma mente em paz com a eternidade.

Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)


Fonte: www.baciadasalmas.com