sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Oito regras para escrever ficção

Achei essa beleza de dica para aqueles (como eu) se aventuram a escrever e descobrir como se faz isso, no meio do processo. Abaixo vai a versão em inglês como eu a encontrei e também uma tradução livre minha. ( Evandro L! Melo @evandrolmelo )
Oito regras para escrever ficção:
1. Use o tempo de um total desconhecido de modo que ele não sinta que seu tempo foi desperdiçado.
2. Dê ao leitor ao menos um personagem para que ele se identifique.
3. Todo personagem precisa transmitir algo, mesmo que seja um simples copo d'água.
4. Toda frase precisa fazer uma de duas coisas - revelar o personagem ou avançar a trama.
5. Iniciar o mais próximo possível do final. (essa não entendi muito bem, mas tudo bem, as 7 dicas restantes são ótimas)
6. Seja sádico. Não importa o quão doce e inocente seus personagens possam ser, faça com que coisas horríveis aconteçam com eles - para que o leitor consiga ver do que eles são feitos.
7. Escreva para agradar apenas um tipo de leitor. Se você abrir a janela e fizer amor com todo mundo, sua história vai pegar uma pneumonia.
8. Dê aos seus leitores o máximo de informação o mais rápido possível. Dane-se o suspense. Os leitores devem ter a compreensão completa de onde a história está e para onde vai, como e porque, como se pudessem terminar a história por si mesmos caso as traças comessem as páginas seguintes.
***
Eight rules for writing fiction:
  1. Use the time of a total stranger in such a way that he or she will not feel the time was wasted.
  2. Give the reader at least one character he or she can root for.
  3. Every character should want something, even if it is only a glass of water.
  4. Every sentence must do one of two things — reveal character or advance the action.
  5. Start as close to the end as possible.
  6. Be a sadist. Now matter how sweet and innocent your leading characters, make awful things happen to them — in order that the reader may see what they are made of.
  7. Write to please just one person. If you open a window and make love to the world, so to speak, your story will get pneumonia.
  8. Give your readers as much information as possible as soon as possible. To heck with suspense. Readers should have such complete understanding of what is going on, where and why, that they could finish the story themselves, should cockroaches eat the last few pages.
- Vonnegut, Kurt Vonnegut, Bagombo Snuff Box: Uncollected Short Fiction (New York: G.P. Putnam’s Sons 1999), 9-10.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Eu sou a caixa dos idiotas

...
- Que merda é essa? - Shadow disse alto.
A imagem se dissolveu em um chuvisco brilhante. Quando voltou, o Dick Van Dyke show havia de transformado, inexplicavelmente, em I love Lucy. Ela estava tentando convencer Ricky a trocar a geladeira velha por uma nova. Mas, quando ele saiu, ela foi até o sofá e se sentou, cruzando as pernas, repousando as mãos no colo e olhando pacientemente através dos anos em branco e preto.
- Shadow. Precisamos conversar.
Ele não disse nada. Ela abriu a bolsa e tirou um cigarro, acendeu com um isqueiro prateado claro e o guardou em seguida.
- Estou falando com você. Vai responder?
- Isso é loucura - disse Shadow.
- E o resto da sua vida é bem normal? Dá um tempo, porra.
- Sei lá. Lucille Ball falando comigo pela TV é mais esquisito, em uma ordem de magnitude muito maior, do que qualquer coisa que já aconteceu comigo até agora.
- Não é Lucy Ball. É Lucy Ricardo. E quer saber o que mais? Eu nem sou ela. Este é só um jeito fácil de aparecer, tendo em vista o contexto. Só isso.
Ela se ajeitou de maneira desconfortável no sofá.
- Quem é você? - perguntou Shadow.
- Tudo bem. Boa pergunta. Eu sou a caixa dos idiotas. Sou a TV. Eu sou o olho que vê tudo e dou o mundo do raio catódico. eu sou o tubo dos tolos… o pequeno altar na frente do qual a família se reúne para fazer suas preces.
- Você é a televisão? Ou é alguém na televisão?
- A TV é o altar. Eu sou aquilo pelo que as pessoas se sacrificam.
- Como elas se sacrificam? - perguntou Shadow.
- Dão o tempo que têm - disse Lucy. - Às vezes, umas às outras.
Ela levantou os dois indicadores e soprou a fumaça de revólveres imaginários das pontas dos dedos. então piscou um olho, aquela piscadela famosa e adorável de I Love Lucy.
- Você é uma deusa?
Lucy deu um sorriso forçado e uma tragada de dama no cigarro.
- Posso dizer que sim.
... 
(Neil Gaiman - Deuses Americanos - Cap 7)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Como são



Como crescem as gramas no verão
recebem a chuva
apontam o céu
e vão

Como dormem os adultos  no domingo
comem de tudo
reclamam preguiça
e vão

Chove
apontam
vão

Comem
reclamam
vão

Evandro L! Melo
@evandrolmelo

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Temos medo do medo acabar




O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção [narrativa] de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A Guerra-Fria esfriou mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação… Precisamos de intervenção com legitimidade divina… O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas [incomodas] como, por exemplo, estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilião e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida… A verdade é que… pesa uma condenação antecipada pelo simples facto de serem mulheres.

A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global:

“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”

E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

Mia Couto

***
peguei emprestado do UoD.