segunda-feira, 28 de julho de 2008

Em nome de Jesus

Em nome de Jesus

Por Paulo Brabo

O drama da narrativa bíblica reflete, em muitos sentidos, um árduo esforço divino para eliminar da mente humana o conceito de magia: a noção de que, através de fórmulas mágicas ou procedimentos estabelecidos, Deus ou o universo podem ser manipulados para atingirmos o objetivo que temos em mente.

Desde a primeira página, um dos traços mais distintivos do Deus das Escrituras é que ele não faz barganhas. Não há ritual ou palavra mágica que possa torcer o seu braço a fazer o que queremos. Se Deus concede o que homens lhe pedem é reflexo da sua magnanimidade e da intimidade de relacionamento que ele propõe, jamais da habilidade humana em manipulá-lo.

Essa obsessão divina em apagar da experiência humana a idéia da magia explica muito nas filigranas dos mandamentos e da Lei de Moisés. Israel não deve ter “outros deuses além de mim”, entre outras coisas, porque os deuses dos outros povos são entidades manipuláveis – aceitam suborno, dobram-se diante do ritual certo, vendem-se por um sacrifício, negociam, especulam e cedem a barganhas. Deus sabe que não é assim que o seu universo funciona, e não quer que seu povo adote essa visão distorcida do mundo. Pela mesma razão ele deita rigorosas proibições contra feitiçaria, amuletos e toda espécie de adivinhação.

Os cristãos reincidem constantemente na magia.

O próprio regime de sacrifícios não pressupõe qualquer controle mágico do mundo; as prescrições deixam muito claro que trata-se de provisão graciosa para a purificação dos pecados, e não de instrumento de manipulação. Deus faz alianças e assina contratos que beneficiam outros além de si mesmo, mas não distribui senhas ou abracadabras. No mundo dele você pode pedir, mas não pode obter o que quer por mágica, isto é, pela força e pela argúcia.

O que o Primeiro Testamento elucida o Novo escancara: Jesus passeia pelo mundo demolindo a noção essencialmente mágica de favor prestado e retribuição. Deus – explica o Filho do Homem – não distingue méritos e não rebaixa-se a troca de favores, mas “faz que o seu sol se levante sobre maus e bons”. Seus filhos não devem recorrer a repetitivas fórmulas mágicas em suas orações, “porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes de vós lho pedirdes”. Não é o pecado nem o bom comportamento que explicam as desgraças ou as felicidades, porque o mundo não funciona pela lógica simplista e retributiva da magia (”Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem padecido estas coisas?”).

O universo – Jesus explica – funciona pela lógica singular da graça, não pela lógica humana da magia e da retribuição. Esta é, essencialmente, a natureza da boa nova do reino: Deus não pode ser manipulado a fazer o bem que já está disposto a fazer em primeiro lugar.

Porém a magia tem um brilho sedutor, e os cristãos resvalam periodicamente nela: recorremos cheios de esperança a óleos milagrosos, profetas curandeiros, caixinhas oraculares de versículos, bibliomancia, quarentenas de oração e copos d’água. Mesmo a obsessão cristã com o domingo é essencialmente mágica, quando o Apóstolo alerta a não cairmos na velha armadilha de “dias de festa, ou lua nova, ou sábados”, coisas que “têm aparência de sabedoria e de rigor ascético (…), mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne”.

O emblema final e mais eloqüente da capitulação cristã a uma visão mágica do mundo talvez esteja no abuso, popular à náusea entre evangélicos e pentecostais, da expressão “em [o] nome de Jesus”. Orar e pedir “em nome de Jesus”, conforme prescrito no Novo Testamento, era provavelmente para ser entendido como se lê; seria orar “como Jesus oraria”, ou pedir “imbuído do espírito de Jesus”. Com o tempo, o enfoque migrou do espírito para a letra; transferiu-se da pessoa e da postura de Jesus para as palavras, imbuídas supostamente de autoridade e poderes sobrenaturais (de forma semelhante ao Shem Hamphoras da tradição judaica medieval). O conteúdo reduziu-se a fórmula, abracadabra que abre – esperamos – todas as portas.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

No country for old men

No country for old men.
Ricardo Gondim

Dei o título para este texto em inglês de propósito. Quero comentar o filme “Onde os fracos não têm vez”, ganhador do Oscar de 2008 – produzido pelos irmãos Coen. Como não considerei a tradução apropriada, preferi o título original que descreve melhor a trama dessa produção americana.

Confesso que não gostei quando assisti ao filme. Saí do cinema com a sensação de que vira mais uma apologia de violência, parecida a tantas outras produções hollywoodianas, exageradas nas cenas explícitas de morte e de vingança. Porém, com o passar do tempo, quanto mais medito no filme, mais percebo sua mensagem metafórica.

O enredo é simples. Um acerto de contas entre traficantes num canto escondido do Texas promove uma chacina em que todos morrem. Pela mala de dólares que sobrou, começa uma nova caça de gatos e ratos, envolvendo polícia, traficantes, mexicanos e pessoas comuns. Um xerife prestes a se aposentar, portanto, um “old man”, se vê obrigado a trabalhar no caso, mas seu cansaço é notório. Sem pique diante da maldade, o xerife se revela uma figura tão amargurada que em determinado momento desabafa: “Eu sempre achei que quando ficasse velho, Deus entraria em minha vida de alguma forma. Mas ele não o fez. Eu não o culpo. Se eu fosse ele teria a mesma opinião sobre mim que ele tem”. O xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones) simplesmente não tem mais forças para enfrentar a maldade que se mostra encarnada, renitente, perene.

Lembrei-me de que o xerife do filme representa todos os que lutam pelo bem e se sentem impotentes diante do avanço da maldade. A luta da polícia, dos investigadores, dos promotores é sem fim. Todo instante alguém tenta fazer o mal. Parece inesgotável a capacidade humana de inventar, imaginar, perversidades. Pedófilos se multiplicam e usam a internet para seduzir crianças. Traficantes se organizam em cartéis. Servidores públicos desviam verbas destinadas à compra de ambulâncias e merenda escolar. Recentemente, o mundo se horrorizou com um pai que por décadas escravizou e abusou sexualmente a própria filha.

As organizações que advogam o direito das crianças, os ecologistas que defendem o meio-ambiente, os juizes, os filantropos, os políticos do bem e o clero, semelhantes ao xerife, por mais que batalhem, acabam com a sensação de nunca terem sucesso algum.

Quase diariamente lido com pastores evangélicos esgotados. A luta deles também parece inglória e seus esforços pífios. Diante da avalancha de maldade que se avoluma, com recursos financeiros minguados e com dificuldade para mobilizar as pessoas para o trabalho voluntário, eles se unem aos outros que se sentem deprimidos.

Não me atrevo, de forma simplista, resolver esses dilemas. Minha intuição, entretanto, me diz que há caminhos alternativos que podem suavizar a desesperança que se espalhou.
É possível abandonar a lógica dos grandes projetos, das megalomanias, dos messianismos. As antigas propostas globais de mudança precisam ser redimensionadas (downsized) para pequenas iniciativas. Antes de querer mudar o planeta, devemos cuidar dos quintais. Para enfrentar o aquecimento global, mudar hábitos cotidianos, como poupar água com banhos rápidos, não abusar do automóvel e, sempre que possível, usar transporte público e até bicicleta. Na política, participar dos conselhos de bairro, envolver-se no chamado Terceiro Setor e nas pequenas ações de desenvolvimento comunitário.

Há uma historinha interessante, bastante conhecida. Um homem caminhava e ao mesmo tempo devolvia para o mar peixes que a maré baixa deixou agonizando na praia. Alguém o repreendeu ao afirmar que seu esforço era inútil e tolo; não faria a menor diferença salvar tão poucos peixes. Ao que respondeu: “Realmente, mas para os que se salvaram, fiz toda diferença do mundo”. Oskar Schindler não acabou com o holocausto, mas fez toda diferença para aqueles que resgatou dos fornos crematórios; Martin Luther King não viu o fim do racismo, mas deu dignidade para os que se inspiraram em sua vida e morte; Madre Teresa de Calcutá não resolveu a miséria da Índia, mas todos que morreram em sua clínica se sentiram amados.

O antídoto para o desânimo pós-moderno é concentrar os esforços nas pessoas e não nos empreendimentos. Os projetos devem servir homens e mulheres, nunca o contrário. As pessoas não podem ser consumidas no fortalecimento das instituições. No caso das igrejas, nenhuma programação, nenhum evento, pode tornar-se um fim em si mesmo. Eles estão a serviço dos indivíduos e só adquirem qualquer sentido quando promovem a vida.

Jesus de Nazaré amou pessoas, viveu numa pequena vila e não diluiu seus esforços com mega eventos. Ele se deu integralmente a doze homens, acolheu os excluídos e nunca se impressionou com o aceno do estrelato. Sua morte transformou-se no mais contundente triunfo. Assim, antes de terminar os dias desiludido, cínico, sem alma; antes de sentir-se derrotado pelo constante avanço da maldade e onipresente perversidade humana, todos precisam aprender a contentar-se com atos singelos, com iniciativas despretensiosas, com feitos simples.

Soli Deo Gloria.