sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A grande festa





O convite para a festa, a grande festa, foi entregue a todos.

Todos foram convidados, alguns escolhidos, mas o convite foi para todos.

O convite era maneiro, colorido, chamativo, intrigante e curioso.

Curioso, pois fazia apenas uma ressalva, uma exigência.

A festa, a grande festa, era de graça. Mas não daquelas com entrada grátis, mas o restante pago. Era tudo grátis mesmo, e podia-se comer, beber, brindar e brincar, se esbaldar de alegria. De graça!

De graça mesmo, sem nenhuma letra miúda com informações confusas.

O endereço estava lá, fácil de ler, talvez um pouco difícil de entender, mas estava lá e era um só.

Agora engraçado mesmo era o mapa para chegar à festa, a grande festa.

Cada convite tinha um mapa, uma direção diferente da outra, pareciam tão diferentes um do outro, mas no fim era o mesmo destino.

O mapa na verdade gerava certo desconforto, pois os caminhos, os diferentes caminhos eram um pouco estreitos demais, as estradas um pouco esburacadas, um pouco difícil de caminhar, eram trilhas estreitas.

Alguns desconfiaram, acharam estranho, não quiseram arriscar, se perder talvez. Era algo novo, ninguém nunca tivera estado lá para contar. Alguns preferiram a segurança da TV com sofá e disseram "deixa o verão pra mais tarde".

Os que se arriscavam e até se animavam para ir à grande festa procuravam se juntar em grupos. Grupos de amigos, de pessoas que pensavam parecidos, de pessoas que tinham a mesma idéia de vida. Pensavam que assim era mais fácil de chegar à grande festa.

Alguns preferiam ir sozinhos, e foram.

O curioso do convite é que fazia apenas uma exigência. Sim, a festa era gratuita, mas havia uma única exigência.
O convite dizia claramente que para entrar na grande festa era preciso ser criança. Apenas isso, não dizia como, porque, nem nada.

Muitas pessoas acharam aquilo o máximo. "UAU uma festa à fantasia!" imaginavam. E correram em busca de uma fantasia para se fingir de criança. Porém embora experimentassem diversas fantasias, nenhuma delas as tornavam crianças de verdade.

Alguns admitiram o equívoco, outros não. Os que não admitiram, continuaram a se fantasiar e a mentir a si mesmos, em uma busca vã de se convencer de que as fantasias as tornariam reais e que poderiam entrar na grande festa.

Ah a festa. Prometia ser a melhor de todos os tempos. Muita fartura. Nada de problemas para se reclamar. Haveria boa música, muita dança, muita animação. Não haveria rodinhas, panelinhas ou agrupamentos de pessoas por classe social, raça, credo ou qualquer coisa que o valha. Ali todos seriam tratados de forma igual e se tratariam da mesma maneira. Ah a grande festa.

Os que perceberam que se fantasiar, fingir ser, não adiantaria, procuraram entender a essência daquela exigência no convite. Era difícil, mas não impossível.

Assim seguiram todos para a grande festa. Cada qual segurando seu convite. Uns lendo e relendo enquanto caminhavam, olhando o mapa para não se perderem. Outros achavam que já haviam visto o bastante, mas mantinham o convite em mãos, como se fosse um amuleto. Outros guardaram o convite nos bolsos e não o consultavam, iam seguindo as pessoas que estavam na frente.

Chegaram à porta da grande festa. "Ué" Espanto e admiração geral.

Não havia portão, catraca, seguranças, só havia uma placa ali na entrada, que dizia: "Nesta festa só é permitido à entrada de crianças".

Curioso que mesmo não havendo ninguém para barrar a entrada, muitos não conseguiram entrar na festa, simplesmente não conseguiam. Cada fantasia, uma mais engraçada que a outra. Umas até convincente ao primeiro olhar, mas mesmo assim não faziam deles crianças.

E foram, um a um, voltando, tristes, sem poderem curtir nem um pouquinho da festança.
Mas para os que entraram, era o grande dia. O grande dia para a grande festa. Já contei como era a festa?! Ah, era fantástica. Havia palhaços, malabaristas, cuspidores de fogo, shows de mágica e muitos, mas muitos contadores de história e não havia ruídos ali, todos os ruídos se calaram.

Havia um tiozinho contando que certa vez colocou mais de 1 milhão de animais num barco de madeira, difícil era cuidar dos hipopótamos, dizia ele "bichinhos geniosos".

Outro ali contava o dia em que o mar se abriu na sua frente enquanto demonstrava um show de mágica no qual atirava um cajado de madeira no chão e este virava cobra, e depois pegava a cobra e voltava a ser cajado.

E mais outro contando como ele pequenino que era venceu um cara dos grandes, "Um fortão com uns 3 metros" dizia.

Mas o ponto alto da festa, não foi os parabéns nem o bolo, o ponto alto da festa foi quando chegou o dono da festa, aquele que enviou o convite a todos.

Sujeito admirável, parecia que brilhava. Sorriso simples na face, sorriso do mais sincero e mais puro que qualquer um ali jamais tinha visto. Era simples, não vestia roupa de gala, ao contrário, vinha descalço, com os cabelos levemente despenteados. É que acabara de sair do carrinho de bate-bate, onde brincava minutos antes com algumas crianças.

Abraçou um a um, e seu abraço trazia uma paz inexplicável. Nem os poetas que ali estavam conseguiam juntar as palavras exatas para tal sensação, tão boa e única ela era.

Ele contou muitas histórias, encantou a todos com o modo como falava, como era. E foi como se todos passassem a enxergar melhor. Em um estalo todos ali passaram a entender o que de fato era ser criança. "Ahhh então é isso" foi o coro geral.

E assim foi a grande festa e estava tão boa que ninguém jamais quis ir embora.
Ah essa festa, fantástica.

Evandro Melo

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A gente acha que ama


A gente acha que ama.
E achando que amamos nos convencemos que amamos.
E quando convencidos que amamos,
julgamos que sabemos o que é amar.
E julgando que amamos da melhor forma, controlamos.
E controlando deixamos de amar.

Evandro L! Melo

domingo, 22 de novembro de 2009

Mais que gracejo seja o meu desejo agraciar




Cada um de nós tem o seu canto
mas quando a gente se ajunta para tocar
não sei vocês, mas eu gosto tanto que pergunto
Viu, Ser Abianto,
se nenhum de nós é grão e o outro palha,
pra que espalhar?
Quem nos junta é a graça
Favor que não mereço
Mas agradeço e peço
Ó Deus! Me faz também querer comunicar
Àquele com quem interagir, fazer sorrir
Mais que gracejo, seja o meu desejo, agraciar
Graça, faz o artista, no uso do talento
Se num recinto, o ingreço é livre
como que ao ar livre, porque livre é o ar
que lhe soprou seu próprio artesão
e em gratidão e ação de graça dá.

(Roberto Diamanso)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O esfolador de anjos





Por Paulo Brabo || www.baciadasalmas.com



– O que você está lendo?

– Esse aqui.

– É romance? Nunca ouvi falar.

– Todo mundo já ouviu falar dO esfolador de anjos. Todo mundo já leu O esfolador de anjos. Ou pelo menos sabe o final.

– Eu não. Do que se trata?

– De que planeta você é? Bom, o que posso contar que é a história de um contador desempregado, bêbado e deprimido que recebe de um sujeito misterioso uma oferta irrecusável.

– Esfolar anjos, naturalmente.

– Ele não sabe quando aceita a oferta, mas é isso mesmo. O visitante misterioso é mandante da máfia dos demônios e vende peles de anjos no mercado negro.

– O contador vende a alma ao demônio, tipo Fausto.

– Mais ou menos. O demônio precisa da ajuda de um ser humano porque só os humanos são imateriais o bastante para manusear os corpos dos anjos. Os demônios esmagam-nos só de olhar para eles, e as peles estragam.

– Nossa.

– É basicamente isso. O resto não vou contar.

– Pode contar. Eu não vou ler.

– Mesmo? Tem certeza?

– Absoluta. Não é o tipo de história que me prende.

– Essa prenderia. O demônio passa toda semana na casa do contador e deixa um carro diferente na garagem, com o corpo de um anjo no porta-malas. O contador tira a pele e as asas e enterra o resto no quintal. No dia seguinte o demônio passa e leva o carro embora com a pele e as asas no porta-malas. Os dois, o contador e o anjo, nunca mais se falam nem se vêem, só se tratam assim, intermediados pelo carro.

– Só isso?

– Mas é bem legal, descreve bem direitinho como o homem esfola os anjos começando pela base das asas, e os métodos especiais que ele tem de usar para destrinchar os anjos antes de enterrar os pedaços. Eles tem uma anatomia diferente da nossa, embora sejam por fora parecidos. O esqueleto dos anjos é um colar de pérolas.

– O que o contador recebe em troca?

– Essa parte é engraçada. Nunca fica muito claro. Talvez nada, se for pensar bem. No quintal da casa do contador, onde ele enterra as carcaças dos anjos, nasce um jardim maravilhoso, com flores brancas desconhecidas e perfumadas, que todos na vizinhança passam a invejar. Um vizinho vem todos os dias para admirar as flores e traz sempre um engradado de cerveja. Mas fica a impressão de que o contador está esfolando os anjos porque quer. Porque gosta.

– E você gosta dessa história.

– Gosto. Especialmente do final.

– E como termina?

– Um dia, quando o contador abre o porta-malas, está o vizinho ali dentro, só que ele é um anjo, e está vivo.

– O vizinho do engradado de cerveja?

– Ele mesmo. Ferido, mas vivo. Ele vem dar ao contador uma última chance, por assim dizer.

– E o cara se arrepende?

– É meio tarde para se arrepender. O anjo revela ao contador que o demônio mafioso o enganou desde o começo. No começo da história ele não era pobre, nem bêbado nem desempregado; era feliz e tinha uma família bonita, embora não lembre hoje de mais nada. Cada anjo que ele esfolou custou um membro querido da sua família, que desapareceu da existência e de que por isso ele não tem como se lembrar.

– Caraca, e por que ele aceitou a oferta do demônio em primeiro lugar, se não estava deprimido nem desempregado?

– É o que o anjo quer saber antes de matar o contador.

– E o que contador responde?

– Não sei. Não cheguei ainda nesta parte.

– Você está nesta parte.

– Como assim?

– Este é O esfolador de anjos, idiota. Nunca estivemos fora da história. Nunca estivemos fora de história alguma.

– Absurdo. Não é possível.

– Se o contador foi enganado; se estamos na história, nada é inconcebível. Podemos ter enganado ou sido enganados nós mesmos. Não que faça diferença.

– Se é verdade, quem é você na história?

– A pergunta é: quem é você na história?

– E como eu vou saber?

– Depende da pergunta que você me fizer. Ou da resposta que me der.

– Ei, pra que essa faca?

– Está vendo? Você deveria ter perguntado na mão de quem ela está.

– Espere, deixe eu ler a última página.

– Idiota, a última página nunca faz diferença.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Roda viva

Esta música, Roda Viva, de Chico Buarque nunca fez tanto sentido para mim.

Incrível como somos frágeis e um simples evento pode nos levar a lugares e situações nunca antes imaginadas.

Somos como barcos a vela no oceano, alguma vezes estamos no controle das velas e aproveitamos o vento, outras vezes os ventos nos levam sem controle nosso e algumas vezes surgem tempestades que compromete nossa nau.

Assim somos nós, frágeis, e mal nos damos conta disso.

PAZ!

Evandro Melo

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Roda Viva

Chico Buarque

Composição: Chico Buarque

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...

A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...

A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...

No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...


segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Cabra da peste

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Esses dias me disseram, a respeito de um projeto que estava desenvolvendo, que Deus levaria as pessoas certas a participar. Compreendo. O problema é que Deus não costuma levar em consideração o fato de que, se as pessoas certas, naquele caso, fossem poucas, eu teria que arcar com um pequeno rombo financeiro. Ele é meio desligado nessas miudezas monetárias. Afinal de contas é dono de todo ouro e prata. Não tem com que se preocupar. Nós é que precisamos desse demônio de papel para sobreviver.

Pensando nisso é que percebi o caminho sutil que está levando o tinhoso a assumir sua forma definitiva nesse mundinho cão.

Aquele espírito de luz, não muito tempo depois de nos aparecer como serpente, abandonou a pobrezinha rastejante e assumiu a forma de metal pesado. Ouro, prata, bronze. Era preciso centenas de escravos para carregar, em carruagens reforçadas, um bom pagamento para casa. Com o passar dos séculos, transformou-se em níquel, mais leve e sutil. Uma boa quantia poderia ser carregada em uma maleta. Lentamente, como o inseto de Kafka, foi afinando até a leveza e versatilidade do papel, e coube em bolsos e cuecas. E vem seguindo seu inacreditável processo de desmaterialização, na intenção maldosa de tomar de novo a forma original da virtualidade, do espírito. Estará, logo, logo, instalado definitivamente dentro de nós.

Não é a toa que o Filho do Homem aconselhou-nos ao desapego total. Não é a toa que chamou o dinheiro pelo seu verdadeiro nome. Mamom. Não é a toa que nos deu como modelo os passarinhos e lírios.

Mas essa insuportável passagem dos evangelhos, talvez uma das mais desprezadas no cristianismo contemporâneo, é quase sempre vista de uma perspectiva, na melhor das hipóteses, parcial. Na esmagadora maioria das vezes, aqueles que não fogem desse texto intragável costumam usá-lo como exemplo do inescapável cuidado de Deus - aquele cuidado que vai fazer a adesão àquele projeto ser certamente suficiente e o rombo no orçamento ser evitado.

Evidentemente não é isso que o texto diz.

O surpreendente com os lírios é que mesmo que muitos floresçam, enfeitem e perfumem o campo, uma enorme quantidade deles morre seca e esturricada na estiagem ou afogada na enchente. Isso quando alguma cabra maldita não pisoteia ou, pior, mata o lírio sufocado em seu esterco. E pássaros, além de serem devorados por uma porção de predadores, são absolutamente incapazes de enxergar a parede de vidro que lhes partirá o pescoço. Ainda assim, por mais absurdo que nos pareça, todos estão sob o cuidado de Deus, segundo o primogênito de Maria.

O negócio é tocar a vida e torcer para nenhuma cabra passar por perto e para que todas as janelas permaneçam abertas.