domingo, 20 de maio de 2012

vida após a vida


O dia mais traumatizante da minha vida, foi o dia da minha morte. Digo da primeira e por enquanto única.
Estava vivo e conforto abundava. Hoje sei que era escuro. Sei o que é escuro, porque tenho o claro.  Quando não se tem antônimo, tudo lhe é sinônimo. 
A vida era boa naquele desconhecido escuro.

Cresci naquele universo, imenso, suficiente e feito à medida, quentinho, seguro e sem pagar impostos.
Passava parte do tempo em descobrimento, de mim mesmo e do ambiente em que vivia, a outra parte eu dormia. Durante o sono profundo o descobrimento permanecia, desta vez guiado não por mim (pelo menos não propositalmente) mas pelo que hoje sei ser o subconsciente. Sonhos disformes e abstratos me alertavam tantas coisas, o futuro até, talvez. 
Ouvia sons, como vozes ecoando em um vale longínquo, abafado. Uma delas, a que mais ouvia, meiga e acalentadora. Que graça! Nem sei explicar porque, mas que graça. Era ouví-la e meu coração parecia querer dançar. 
Eu sorria. Será que de onde vinha aquele som, aquela voz, eles sabiam que eu sorria?
Outro som, este mais grave feito um alegre trovão, vinha ocasionalmente. Passavam-se infinitos tempos até que chegasse, mas quando vinha, que alegria. Eu sorria e me esticava. Meu corpo em vontade própria produzia movimentos enigmáticos. E eu sorria.

Hoje, na minha segunda vida, o tempo parece mais farto, flerta com o infinito.
Na vida anterior pensava o mesmo, mas foi tudo tão rápido, que tristeza eu senti ao ver que o tempo que eu julgava ser eterno passara e lá se ia minha vida toda. Descobri depois que foram 9 meses. Na verdade 8, encurtaram minha primeira vida. 

Não que eu tenha pensado nisso, de fato não, mas se me perguntassem na época se eu acreditava em vida após a morte, diria que não, que eu jamais morreria, aliás, o que é morte?

Traumatizante.

Em um dia estou feliz e brincalhão com a mão que acabara de descobrir, no outro sinto como se o mundo em que vivia não me quisesse mais, e ele deixava isso bastante claro.
Pressão de cima, dos lados, opressão. Dor, incômodo, primeiros sinais de angústia. Sentimento que me acompanha desde então.

Já sentiu dor sem poder gritar? Eu não podia, por não saber, nem sabia que eu mesmo poderia produzir sons. Mas aquele momento adicionado de angústia pareciam querer me ensinar.
Algum tempo, ainda intangível e portanto infinito tempo para mim, se passara e um feixe de luz, quase uma flecha, atravessara a segura atmosfera em que passara a vida toda, me atingindo o corpo, os olhos. Sinto a dor do corpo precisando se ajustar depressa àquele novo universo. Os pulmões de dilatando pela primeira vez dão os primeiros sinais de que àquela nova vida não seria das mais fáceis.
Estou morrendo. - a sensação era essa, ainda que ignorasse a expressão 'morte'.

Algo me puxa para fora do meu mundo. Certamente era um ser superior, talvez um deus. Descubro então que tenho um grito adormecido dentro de mim e a todo pulmão o acordo. Berro até perder o ar que acabara de achar.
Droga de morte, não poderia ser menos dolorida?!
Esse deus, vestido de azul claro e de olhos atentos, tinha uma cara bem estranha, uma coisa branca ao invés de boca e nariz.
Será que eu fiz algo errado na minha vida e estou sendo castigado por esse deus azul claro?

Ele então me apresenta alguém, descansa meu corpo ao lado daquela voz. "Oi filho". Ouço aquilo e meu coração palpita. Parece que não sei mais sorrir. Era a mesma voz, o mesmo timbre, melodia, e agora nada abafada, era nítida como uma pérola.
Castigo aquilo não era.

Em seguida chega o trovão alegre, me diz "Oi menino". Meu corpo se estica de emoção, mas como não sabia sorrir nem falar, chorava. Mas era riso, vocês me entendem?
Descobri mais tarde que não se tratava de um deus azul claro, apenas um médico. Deus era outro. Morreu e nasceu menino. Morreu e renasceu, Deus.

Desde o dia da minha morte, vivo minha segunda vida e já me disseram que ela é finda.
Por saber que a vida é finda e o tempo distraído, passo parte do tempo observando, respirando e poetisando. A outra parte, lamento.
Há dias em que tenho a clareza de que morri e fui para o inferno. Dias de angústia (que insiste em ser companheira).
Mas são raros, logo passam, feito chuva de verão.

Também não acho viver o céu, não, talvez quem sabe na próxima vida. 
Assim seja, Deus.



texto e arte:
evandro l! melo