segunda-feira, 31 de março de 2008

De qual salvação estamos falando?

Este texto foi retirado do site do Pr Ricardo Gondim (www.ricardogondim.com.br). Trata-se de uma "conversa" que o Pr. está tendo com outra pessoa, o Diego.
Não sei dizer se essa pessoa (Diego) realmente existe e se esse é o nome dele, ou se é uma criação do Gondim para conseguir passar seus pensamentos.
De qualquer maneira, é um texto muito sério, profundo e que vale a pena ser refletido.

Boa leitura.


Paz!





Mentoria - De qual salvação estamos falando?

Ricardo Gondim.

Querido Diego,

Por favor, desculpe-me pela demora em escrever. Ando sobrecarregado. Mas preciso voltar à sua antiga pergunta sobre a missão do pastor.

Passei por crise semelhante. Por volta dos meus quarenta e poucos anos, perguntei-me o que fazia da vida. Cansei dos esquemas dos evangelistas itinerantes. Eles me entediavam com suas pregações repetitivas. Caíram algumas vendas e vi os interesses escusos dos missionários estrangeiros que tiravam fotografias de eventos brasileiros para fazerem propaganda nos Estados Unidos. Chorei amargamente quando notei que os “caciques” das grandes denominações eram mais grosseiros que os políticos de que eu desdenhava.

Acordei também para os meus pecados sutis. Vi que não só partilhava de um mundo religioso doente, mas o reforçava com uma vaidade sedenta de prestígio. Eu sabia, mas não queria abrir mão, da minha vontade louca de aparecer. Eu queria construir um nome e tornar-me notório pela “unção”, “autoridade”, “loquacidade”. Ah, como eu já quis despontar como um “pastor bem sucedido”! Queria ser igual aos famosos que conhecia, principalmente os estrangeiros, que arrebatavam multidões.

Esses messianismos, essas falsas onipotências, começaram a desmoronar depois de um culto quando uma jovem fez algumas perguntas desconcertantes. Marli (nome fictício) era graduada em filosofia na Universidade de São Paulo e, devido ao seu senso crítico, me confrontou com serenidade.

“Ricardo, cadê a vida abundante prometida por Jesus”?. Pego assim de supetão, eu não soube o que responder. Tentei me safar com outra pergunta. “O que você quer saber?”, na verdade eu só queria ganhar tempo com minha réplica. Ela não cedeu: “Pastor, quero entender. O que Jesus prometeu tem conexão com a realidade da vida? Ou a vida abundante que ele falava era apenas um desejo utópico dos apóstolos?”. Nervoso, insisti em perguntar ainda procurando ganhar tempo: “Como assim?”. “Se Jesus prometeu que seus seguidores experimentariam vida abundante, quero saber por que não vejo acontecer concretamente?”.

Nessa hora tive que dar a mão à palmatória. “Marli, você tem razão a vida abundante prometida por Jesus aparece muito mais nos discursos do que na concretude da vida. Entretanto, o problema não é dele ou dos apóstolos, mas nosso”.

O discurso religioso promete muito mais do que cumpre. Dificilmente constatam-se evangélicos com qualidade de vida melhor do que as pessoas não convertidas. Problemas conjugais, instabilidade emocional, patologias psíquicas, permanecem intocados na grande maioria das igrejas que alardeiam que seus fiéis terão uma “vida abundante”. Enquanto os auditórios se maravilham com discursos triunfalistas que asseguram o melhor casamento, felicidade total no trabalho e paz duradoura, enormes problemas são varridos para debaixo dos tapetes ou justificados como “falta de fé”, “desobediência”; ou resultado de “ataques do diabo”. Por que isso acontece?

Priorizou-se a “salvação” como uma esperança a ser alcançada depois da morte. E as igrejas, cada uma se acreditando mais legítima, se especializam em oferecer o bilhete para a vida eterna - que só vai começar quando o coração parar de bater. Assim, meticulosas em “dar certeza da salvação” aos seus convertidos, não se preocupam em ensinar como viver do lado de cá. Com esse modelo, comumente se vê gente segura de que vai para o céu, mas sem saber lidar com os momentos triviais da existência.

Em minha experiência pastoral, já tive o desprazer de aconselhar mulheres super espirituais, que se gabam do nome estar “escrito no livro da vida”, mas intoleráveis, mal-resolvidas e tristes. Recentemente precisei gastar três horas com um pastor que há anos prometia o céu para quem “levantasse a mão para aceitar Jesus”; só que ele não sabia resolver seus dilemas sexuais. No meio de nossa conversa, abatido ele me confidenciou: “Ricardo, estou vivendo num inferno”.

Sua missão, meu caro Diego, é ajudar às pessoas a tratarem a vida eterna como uma possibilidade para aqui, para a terra. Aliás, a dimensão transcendental da salvação não compete a você; não depende de seus esforços e não acontecerá como resultado de sua confiabilidade ou unção. Salvação, vida eterna, foi conquista da cruz. Ela é obra vicária de Cristo, o mérito será sempre dele. Vida eterna é distribuída indistintamente a todos pela graça; e só o Espírito Santo convence do pecado, da justiça e do juízo.

Concentre-se em mostrar que o reino de Deus é chegado e que está entre nós. Livre das condenações da lei, sem precisar compensar os pecados com penitências e, sem ter que ganhar o favor divino com obras, a humanidade pode dar início ao projeto de humanizar-se. Neste propósito divino, crescemos em maturidade, nos solidarizamos com os carentes, exercitamos misericórdia e sempre defendemos a justiça.

Você precisa desvencilhar-se do antigo modelo de evangelização, que promete uma salvação para depois do último fôlego. Comece a pregar a chegada do Reino, só assim as pessoas se sentirão estimuladas a mudar e essa tarefa é extraordinária.

Mude o mote de suas pregações. Aborde questões práticas sobre matrimônio, polidez, cordialidade, cidadania, vulnerabilidade, altruísmo, compaixão, preocupação ecológica, dignidade da mulher, educação infantil. Acredito que o cristianismo verdadeiro deveria preocupar-se muito mais com o jeito como as pessoas guiam seus automóveis do que em dar-lhes “garantias” de que vão para o céu.

Não, não pense que desconsidero o céu; essa é nossa esperança eterna, nossa maior riqueza. Contudo, eu realmente creio que o destino eterno de cada indivíduo foi garantido pelo sacrifício de Cristo na cruz e que, não precisando mais nos preocupar com esse importantíssimo assunto, podemos nos concentrar nos demais. Alguns são, sim, menos importantes diante da eternidade, mas fazem uma enorme diferença para a felicidade das mulheres, maridos e filhos.

Minha sugestão é que você releia os Evangelhos; procure as mensagens em que Jesus ensinou a ganharmos a vida no presente. Você se lembra daquela passagem de Mateus 16.26? “Pois, que adiantará ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou, o que o homem poderá dar em troca de sua alma?”. Antigamente eu entendia esse texto como uma advertência para que não me tornasse um grande conquistador ou um milionário e acabar no inferno. Hoje eu o leio numa dimensão existencial. Acredito que Jesus advertia seus discípulos para que não tentassem nenhuma conquista, se no processo perdessem a alma existencialmente. Para Jesus não adianta querer ter tudo (inclusive o céu) se nessa busca nos tornarmos amargos, calculistas e torpes.

As religiões, o cristianismo inclusive, já garantiu que muita gente inclemente, perversa e promotora da morte iria para o céu. Infelizmente!

Eu já não peço que as pessoas levantem a mão, concordando com a minha pregação; como também não lhes asseguro que, daquela hora em diante, receberão um selo que lhes garantirá o céu. Hoje convido as pessoas a começarem uma peregrinação. Cientes do amor de Deus, todos podem tomar o caminho proposto por Jesus de Nazaré. Nesta trilha, na companhia do Espírito Santo, todos se tornarão novas criaturas.

Você vai precisar de muita coragem para remodelar seu ministério, mas conte com minha ajuda e intercessão.

Soli Deo Gloria.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Proposta de espiritualidade

Proposta de espiritualidade
Ricardo Gondim

Não é preciso muita perspicácia para perceber que o movimento evangélico ocidental passa por uma grande crise. As incursões do neo-fundamentalismo da direita religiosa na política estadunidense não ajudaram muito.

Os reclames de que a sociedade preservasse "valores morais" caíram por terra porque não encontraram respaldo nas próprias igrejas, que se revezaram em escândalos. Para agravar a crise, grandes segmentos evangélicos se apressaram em legitimar a invasão do Iraque, argumentando que a Bíblia respaldava uma "guerra justa".

Na América Latina, principalmente no Brasil, a rápida expansão do pentecostalismo produziu um grave desvio ético na compreensão do Evangelho. Apareceu um novo fenômeno religioso, mais comumente identificado como "teologia da prosperidade". O que se ouve como "pregação", pelos tele-evangelistas e nas mega-igrejas dificilmente poderia ser associado ao protestantismo histórico ou ao pentecostalismo clássico.

Como não há mais nenhuma novidade em afirmar que mudanças radicais precisam acontecer no movimento evangélico, a questão agora é perguntar: O que tem que mudar? Eis algumas propostas:

Proponho uma espiritualidade menos eficiente. Que os pastores desistam de associar a aprovação de Deus para seus ministérios com projetos bem sucedidos. A fé cristã não se propõe a refletir o mundo corporativo em que competência se prova com resultados.

Na espiritualidade de Jesus, os atos de alguns servos de Deus podem ser anônimos, despercebidos e pequenos. A urgência das comunidades crescerem, de pastores provarem como Deus os abençoou com "ministérios aprovados" acabou produzindo essa excrescência: igrejas que mais se parecem com balcões de serviços religiosos do que com comunidades de fé.

Proponho uma espiritualidade menos cognitiva e mais vivenciada. A priorização da "reta doutrina" sobre a experiência da fé, acabou produzindo crentes argutos em "provar" a sua fé, mas bem frágeis no testemunho.

A obsessão pela verdade como uma construção racional faz com que os catecismos se tornem belas elaborações conceituais, enquanto os testemunhos pessoais se mantém questionáveis. O evangelho precisa ser escrito em tábuas de carne; mostrar-se nos atos daqueles que se propõem a brilhar como luz do mundo.

Proponho uma espiritualidade menos mágica e mais responsável. A idéia de um Deus intervencionista que invade a todo instante a história para resgatar seus filhos, dando-lhes alívio, abrindo portas de emprego e resolvendo querelas jurídicas, acabou produzindo crentes alienados, sem responsabilidade histórica e sem iniciativa profética.

Com esse comodismo, as igrejas se distanciaram da arena da vida. Acreditaram que bastaria amarrar os demônios territoriais para acabar com a violência e com a miséria. O Evangelho não propõe que a história seja transformada por encanto, mas com ações políticas que defendem a justiça.

Proponho uma espiritualidade menos intolerante. A idéia de um mundo perdidamente hostil a Deus gera igrejas intransigentes, que se enxergam privilegiadas. A radicalização da doutrina da queda faz com que se perceba o mundo condenado, irremediavelmente perdido. Com essa visão, a igreja se fecha, só encara o mundo como um campo de batalha, e é incapaz de acolher os moribundos que jazem nas margens das estradas.

A espiritualidade evangélica precisa resgatar doutrinas conhecidas nos primeiros anos da Reforma, como a Imago Dei (a imagem de Deus em todos) e a Graça Comum (o favor de Deus capacitando a todos).

Proponho uma espiritualidade que promova a vida. Os evangélicos pregaram por anos a fio a salvação da alma e, muitas vezes, se esqueceram que Deus deseja que experimentemos vida abundante antes da morte. Aliás, o céu deveria ser uma conseqüência das escolhas que as pessoas fizerem na terra e não uma promessa distante. Com essa ênfase exagerada na salvação da alma, alguns se contentam com uma existência sofrível, mal resolvida, acreditando que um dia, no além, tudo ficará bem.

Proponho uma espiritualidade que não contemple a santidade como apuro legal, mas como integridade. Com cobranças legalistas, os ambientes se tornam exigentes. É inócuo estabelecer o alvo da vida cristã como uma perfeição exagerada, que para alcançá-la seria necessário transformar as pessoas em anjos.

Hipocrisia nasce com esse tipo de exigência. É preciso dialogar com as imperfeições, com as sombras e luzes da alma; sem culpas e sem fobias. Só em ambientes assim, existe liberdade para amadurecer.

Proponho uma espiritualidade que estabeleça como objetivo, gerar homens e mulheres gentis, leais, misericordiosos. Antes de almejar aparecer como a instituição religiosa detentora da melhor compreensão da verdade, que procure amar com singeleza; antes de se tornar uma força política, que saiba caminhar entre os mais necessitados; antes de alcançar o mundo inteiro, que trabalhe ao lado dos constroem um mundo melhor.

Estou consciente que minhas propostas não têm muita chance de se realizarem, mas vou mantê-las como um horizonte utópico e vocação.

Soli Deo Gloria.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Além da submissão (parte 6 de 6)

O amor não conhece outro caminho

Em segundo lugar, o amor distingue-se da justiça pela natureza dos seus motivos. A obediência legal é sempre induzida por estatutos definidos; o amor não. Uma vontade que dependa de um impulso externo como esse não compartilha da natureza do amor. O amor genuíno só recebe ordens de si mesmo. O fato de que outros estabeleçam como nosso alvo a verdadeira comunhão interpessoal não determinará que conduzamos uma vida cheia de amor; esse alvo, permanecendo para sempre em pé por seus próprios méritos, só pode ser compreendido por quem está cheio de amor, e que por livre escolha adota-o para si mesmo.

Além disso, como o amor é o reconhecimento, de dentro, de um alvo eterno, ele é guiado passo a passo por seu próprio caminho autodeterminado. O que por si mesmo julga ser, em suas próprias circunstâncias particulares, o melhor meio de alcançar o alvo eterno, regerá sempre a sua conduta; ele não conhece outro caminho. Caso se submetesse a quaisquer outras leis sua livre confiança seria dominada pelo medo, ou sua energia afundaria em indolência.

O amor genuíno só recebe ordens de si mesmo.

Mesmo que, como os heróicos fariseus, um homem sofra o martírio por sua fé, isto é, por obediência à lei, se não tiver em si mesmo algo dessa sinceridade e dessa independência do amor, de acordo com o apóstolo Paulo ele nada será.

A verdade é que, no que diz respeito ao tempo, o amor começa em todos os casos apenas quando uma pessoa experimenta o amor. Daí os esforços incessantes de Jesus no sentido de despertar nas pessoas um senso do amor inesgotável que na realidade experimentam. Uma vez que essa consciência nascente produza sua obra dinamizante, a pessoa possuíra vida em si mesma. Sua atividade não estará mais fundamentada, como se fosse mera transação, no interesse próprio, já que vantagens podem ser obtidas promovendo-se o bem-estar de outros; não será despertada por estímulos à simpatia, surgindo a partir de uma comunhão já estabelecida.

Uma vez que o amor venha à existência, sua operação será inteiramente autodeterminada. Não poderá aceitar leis vindas de fora, mas a partir de sua consciência interior outorgará a lei para si mesmo. Deixará de depender de um objeto digno de amor, como acontecia quando foi inicialmente despertado, mas, como o sol de Deus, distribuirá livremente e abundantemente, em todas as direções, suas riquezas peculiares.

A esse amor pertence a tranqüilidade sublime do poder criativo. Sua natureza e sua força são divinas. Jesus ensina que é assim, e diz ainda que o amor, e apenas o amor, é requerido de todo homem. O fato de que Jesus seja capaz de exigi-lo, por saber que será desperto esse livre a ativo poder do amor naqueles reunidos ao redor de si, em cujas vidas resplandece agora mesmo a luz pela sua manifestação de si mesmo - é isso o que a redenção representa para nós.

Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)


Fonte: www.baciadasalmas.com.br

segunda-feira, 3 de março de 2008

Além da submissão (parte 5 de 6)

O amor é mais severo que a justiça

Jesus foi o primeiro a demonstrar de que modo superar esse monstruoso estado de coisas. No momento em que afirmamos que nada pode nos dizer o que é bom a não ser uma tradição dada por Deus, a religião irá prevalecer sobre o sentimento moral de uma forma que se mostrará fatal para ela mesma.

Nosso único meio de proteção consiste em perceber que a coerência moral – em outras palavras, a sinceridade da vontade – é o primeiro passo na direção daquela religião na qual o Deus vivo é verdadeiramente buscado.

A expressão bíblica para religião é confiança em Deus e amor a Deus. Confiança genuína em Deus consiste em sentirmos que somos filho de Deus; amar a Deus consiste em colocarmos como nosso alvo, como o objeto final da nossa vontade, a qualidade de união com Deus que fica implícita no desejo de tornar-se filho de Deus.

“Por que vocês não julgam por si mesmos o que é bom?”

Ora, de acordo com Jesus isso só pode ser obtido através da obediência moral – através de um amor ao próximo que permaneça impassível diante da inimizade dos homens. Ele portanto coloca o discernimento moral como elemento primário em toda verdadeira religião. Não seremos capazes de amar a Deus até que comecemos a experimentar aquela paz interior que culmina com o amor a nossos inimigos. É impossível ansiar pelo próprio Deus, a não ser que saibamos o que é bom, pois Deus somente é bom. Se queremos encontrar e seguir a Deus, devemos ser capazes de reconhecer o que é bom. É por isso que Jesus ataca a idéia errônea de que, a fim de reconhecer o que é bom, devemos primeiro conhecer a Deus e compreender os seus mandamentos. Aos que assim pensam Jesus propõe a pergunta: “Por que vocês não julgam por si mesmos o que é bom?” (Lucas 12:57).

A mesma verdade Jesus imprimiu de forma profunda sobre nós em sua explicação do mandamento sobre o amor, esse amor que constitui a unidade da sua mente.

Porém para obtermos uma real compreensão desse mandamento não basta apontar que trata-se de um amor a Deus que é também amor ao próximo e de um amor ao próximo que é ao mesmo tempo amor a Deus. Esse método de elucidar a questão, na verdade, tem muitas vezes servido para obscurecê-la, porque pode gerar a impressão de que em sua natureza e operação o amor distingue-se da justiça por ser menos severo do que ela.

A justiça admite exceções; o amor não admite exceção alguma.

Porém esse não é, de modo algum, o amor de que Jesus está falando. Desse amor podemos desenvolver uma idéia mais clara observando em que ele de fato difere da justiça, e a primeira distinção está em que o amor é mais rigoroso do que qualquer justiça. A justiça admite exceções; o amor não admite exceção alguma.

A justiça não possui propósito constante, apenas segue as mudanças na natureza humana que revelam-se na história. É impossível dizer o que será considerado justiça numa data futura. O amor se presta, é verdade, a incansável variedade, a adaptar-se a todo impulso; porém seu propósito está inalteravelmente dirigido a um alvo que ele conhece – a saber, uma comunhão interpessoal em que todos sintam em cada um uma felicidade que ultrapasse qualquer outra alegria.

A vontade de amar busca produzir e intensificar essa comunhão ao redor de si, reconhecendo ser este o seu alvo eterno, e encarando como impensável que seu alvo pudesse jamais ser qualquer outro. A paz interior produzida por um alvo invariável e claramente percebido torna a vontade de amar ao mesmo tempo mais forte e mais severa do que qualquer forma de justiça.

Devemos pensar no amor do qual Jesus fala como o exercício máximo da força de vontade, o poder concentrado de uma mente que conhece o objeto de sua vontade. Quando chama os homens a amarem seus inimigos, Jesus não está requerendo deles algo extraordinário – algo assombroso e impossível de compreender. O que ele está oferecendo é um exemplo claro do exercício da vontade cujo único objetivo é a comunhão interpessoal. Esse propósito é confirmado pelo discernimento claro de sua lei eterna; e conseqüentemente não representa a perda da vida individual, mas é a ação mais intensamente concentrada e viva da vontade pessoal.

Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)


Fonte: www.baciadasalmas.com.br

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Além da submissão (parte 4 de 6)

A morte da moralidade

A moralidade dos fariseus ainda prospera entre nós. Dentre os líderes intelectuais do nosso povo muitos sentem-se horrorizados diante da noção de que uma pessoa é capaz de fazer o que é bom apenas se sua vontade estiver direcionada à busca da verdade da forma como ela mesmo a percebe. Afirmam que, ao contrário, carecemos de mandamentos “objetivos” que nos digam exatamente o que fazer.

Se com isso eles quisessem dizer que coisas como lei, tradição e autoridade pessoal são em geral necessárias, estariam certos. A verdadeira opinião desses líderes do nosso povo, no entanto, é que obedecer a essas autoridades é em si mesmo fazer o que é bom e – pior ainda – que chegamos ao conhecimento do que é bom deduzindo-o a partir das leis impressas sobre nós pela natureza e pela história. Agindo assim esses guias cegos de cegos declaram não ter olhos para verem eles mesmos o que é bom, embora estejam cheios de honesto zelo, de uma natureza não muito diversa do zelo os fariseus, seus protótipos.

É apenas observando como Jesus vai à raiz da insinceridade e da indolência dessa concepção de moralidade que veremos claramente o significado de suas idéias morais em sua influência sobre nós mesmos.

Os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

No curso de sua incansável guerra contra o auto-engano dos homens virtuosos ao redor de si, Jesus revela que somos capazes de querer uma única coisa de cada vez. Por mais que nos esforcemos, não conseguimos servir a dois senhores. Da mesma forma que o olho deve ser “simples” para dar ao organismo a luz necessária, o homem interior estará na escuridão a não ser que concentre cada impulso seu numa única direção, na busca de um único alvo.

Será que Jesus considerou que sua missão consistia em revelar aos homens qual deveria ser esse alvo? De modo algum. Ele sabia que a essência da lei era conhecida em todo Israel, os mandamentos de amarmos a Deus e ao próximo. Sabia também que não era difícil fazer cada pessoa reconhecer quem é o seu próximo, de modo a perceber que quando está sendo cruel com o outro está condenando simultaneamente a si mesma. O objetivo de Jesus era outro, demonstrar que por nenhuma palavra externa somos capazes de chegar ao conhecimento do que é bom.

Jesus certamente viveu de maneira única a noção de Deus como expressão última de todas as coisas, como nosso único e necessário bem. Pois para ele o Reino de Deus significava apenas aquele futuro de bem-aventurança cuja condição necessária é que apenas Deus reine dentro de nós. Todas as coisas boas que não exatamente nos levam mais para perto de Deus preparam a nossa destruição. Verdadeira integridade é amor a Deus.

Porém, a partir dessas noções fundamentais a respeito da devoção os homens concluíram que nosso dever supremo é obedecer a vontade tradicional de Deus – conduta pela qual somos expostos a um perigo terrível, visto que conduz a uma forma de devoção fatal a qualquer clareza moral. Pois, dentre os mandamentos transmitidos a nós como expressão da vontade de Deus, haverá sempre em nós a tendência de considerarmos superiores aqueles que deixam claro qual seja nosso dever imediato para com Deus. Conseqüentemente, os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

Isso Jesus encontrou nos defensores da virtude ao redor de si, gente que lutava com grande cuidado a fim de desenvolver e aprimorar as regras transmitidas a eles para o serviço de Deus. Porém aos olhos de Jesus a virtude aparente desse método de servir a Deus transformava em impossibilidade um serviço vivo e vital; ele via nesse método a carcaça ao redor da qual reuniam-se os abutres.

Jesus não dará ouvidos às nossas alegações de que uma obrigação relacionada ao culto nos desobriga de suprir as necessidades de qualquer pessoa pela qual sejamos responsáveis num dado momento. Os profetas já haviam dito que misericórdia é melhor do que sacrifício, mas no tempo de Jesus do zelo dos escribas havia nascido e prosperado um religião cuja vitalidade envolvia a morte da moralidade.

Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)

Fonte: www.baciadasalmas.com.br

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Além da submissão (parte 3 de 6)*

O QUE LHES FALTAVA

Podemos ganhar uma idéia mais clara a respeito da mente de Jesus e da sua pessoa observando a natureza da diferença moral entre ele e os outros ao seu redor. Estaria essa diferença no princípio de que a integridade não é questão de ação exterior mas de disposição interior? Seria essa a natureza da “justiça superior” [à dos fariseus] na direção da qual ele procurava impulsionar os seus discípulos?

Porém, para gente familiarizada com as palavras dos profetas “Este povo honra-me com seus lábios, mas o seu coração está distante de mim” e com a oração “Cria em mim, ó Deus, um coração puro”, essa distinção certamente não pareceria novidade. Com respeito a isso a diferença entre Jesus e os justos da sua nação só poderia ter consistido no grau de precisão com o qual ele aplicava esse princípio, e teria sido essa diligência que lhe dera o direito de chamá-los de hipócritas.

Se, porém, pararmos por aqui, estaremos longe de compreender Jesus na força e na totalidade da sua mente. O que é peculiar no pensamento moral de Jesus é que ele leva esse princípio ainda mais longe, e assim exibe pela primeira vez a sua força completa.

Ele tem profusa satisfação em, como os profetas, atacar a hipocrisia no sentido da deliberada discrepância entre o que se é e o que se aparenta ser; ele também expõe a natureza radical dessa discrepância. Porém Jesus sem dúvida sabia que, no sentido usual do termo, os fariseus não eram hipócritas, prontos como estavam a enfrentar a morte nas mãos dos romanos sempre que a inviolabilidade da lei estava em risco.

No sentido usual do termo, os fariseus não eram hipócritas.

Ele no entanto decidiu claramente que a medonha corrupção da natureza espiritual deles fazia-os merecedores do julgamento do inferno. Ele denunciava-os por prescreverem, deixando de colocar em prática, e por não cumprirem as exigências que eles mesmos haviam imposto sobre os outros. Porém não era por falta de atividade, como comumente se pensa, que os fariseus deixavam quaisquer deveres por cumprir; ao contrário, eram zelosos até o último grau.

O que lhes faltava era aos olhos deles mesmos de pouca importância – algo para o que não tinham tempo, devido à supremamente importante preocupação de cumprir a lei com a maior exatidão possível. Para eles, portanto, não era objeto de preocupação que sua vontade pessoal fosse sincera e íntegra com relação a si mesma, consciente de seu direito eterno. Eles, de fato, buscavam cumprir a lei, mas apenas a fim de se provarem justos, e portanto a fim de obterem algo completamente diferente.

Eles queriam servir a dois senhores – feito que, segundo Jesus, é impossível de realizar por causa da natureza da vontade. Buscando compreender no mais ínfimo detalhe um número enorme de preceitos isolados, os fariseus negligenciavam a questão essencial da lei, a demanda por justiça, misericórdia e fidelidade como meio para uma irmandade genuína.

Não estavam fundamentados na verdade, porque negligenciavam a autenticidade que deve ser capaz de enxergar por si mesma o significado e a justa demanda da lei, descobrindo dessa forma como cumpri-la. Tornavam a lei um fardo terrível de se levar, mas não sentiam eles mesmos o seu peso, porque era fácil para eles satisfazer exigências incompreensíveis, e porque viam que é perfeitamente possível desempenhar e livrar-se de tarefas cujo significado não se compreende. Imaginavam que cumpriam adequadamente a lei, e consideravam-se servos valiosos; enquanto isso, impediam que os conceitos morais da lei entrassem em vigor, por acharem que não valia à pena investigar a verdade que havia neles.

Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)


*Em tempo, a série é dividida em 6 partes e não 5 como havia escrito. Fonte: www.baciadasalmas.com.br

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Além da submissão (part 2 de 5)

Além da submissão

Lutero não superou o mau uso das instruções morais de Jesus, que na Igreja de Roma demonstrara sua força completa e letal. Ele também tomava por certo que o cristão é obrigado, pelo menos, a obedecer cada palavra de Jesus que chegou até nós e não foi expressamente endereçada a um indivíduo em particular, sem considerar se a exigência que ela contém diz realmente respeito a ele mesmo em sua presente circunstância.

Uma obediência dessa natureza é, no entanto, um monstruoso mau uso das palavras de Jesus, e para um cristianismo cujo alvo é habitar o mundo, ela acaba não deixando qualquer escolha além da divisão entre clérigos e leigos, para detrimento moral de ambas as partes. Porém, mesmo que o resultado desse uso das suas palavras fosse a mencionada divisão, não teríamos direito de chamá-lo de abuso se o próprio Jesus demonstrasse tencionar que todos os homens obedecessem cegamente as suas palavras, mesmo sem apreender a verdade que elas contém.

Se tratadas meramente como padrões a serem copiados, as palavras de Jesus separam os homens da verdade, e portanto de Cristo.

Sem dúvida Jesus fez exigências para as quais ele esperava, de todos os seus discípulos, obediência incondicional. Porém ele jamais exigiu que alguém cumprisse suas palavras cegamente e precipitadamente, sem compreendê-las. Em cada caso ele pedia mais do que isso; não meramente submissão, mas a obediência interior de um agente livre. Suas palavras aplicam-se aos que realmente as aceitam, e essa verdadeira aceitação elas conquistam estimulando a tendência à independência que é inerente à vontade.

No coração de cristãos individuais o poder espiritual de Jesus há muito tem suprido o que faltou na ação de Lutero sobre a igreja – isto é, o discernimento moral de que podemos reconhecer Jesus como nosso líder e ao mesmo tempo perceber a iluminadora verdade de palavras que, se tratadas como padrões a serem copiados pefeitamente, separam os homens da verdade, e portanto de Cristo. Uma única palavra de Cristo é capaz de despertar essa compreensão; porém nenhuma palavra específica, nem a soma de todas as suas palavras, é capaz de nos fazer perceber a verdade que há nelas. Isso só pode acontecer se buscamos o próprio Jesus – e por isso não estou querendo dizer nada fantasioso, mas a simples tentativa de compreender a mente da qual procediam essas palavras maravilhosas e terríveis, porém graciosas.

As palavras de Jesus podem ser tabuladas, mas não suas idéias morais; essas só podem ser apreendidas quando as reconhecemos como o resultado de uma Vontade que nada tem de arbitrário, mas é uma mente em paz com a eternidade.

Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)


Fonte: www.baciadasalmas.com