quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O segredo de agradar a Deus.

Achei este texto escrito pelo Gondim em seu site. É incrível como ele consegue escrever meus pensamentos e sentimentos.

O texto que segue abaixo exprime muito do que eu penso sobre viver, sobre como agradar a Deus.

Uma passagem da Bíblia que sempre me vem à cabeça, é Jesus falando que o céu pertence às crianças, que se quisermos ter a morada eterna, temos que ser como crianças.

E quem nesse mundo vive melhor do que as crianças? Criança vive cada dia como se fosse o último, curte, aproveita, brinca até se cansar a cada dia.

Criança não se preocupa com o dia de amanhã, criança é humilde, criança é.... criança!

Que Deus tenha misericórdia de nós, que não sabemos gastamos nossa vida com vaidades!

Boa leitura!



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Portanto, vá, coma com prazer a sua comida e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz – Eclesiastes 9.7.

José Fulano de Tal morreu ontem. Pobre homem! Consciente dos seus deveres, nunca atrasou no relógio de ponto. Jamais perdeu um trem. Era impensável que acelerasse no sinal amarelo. Correto, pagou todas as suas prestações na data exata. Vestiu a mesma camisa até puir o colarinho. Sempre elegeu o candidato que votou. Leu o jornal diariamente. Teve um enterro comedido, sem muita emoção, parecido como a sua existência.

José Fulano de Tal foi assíduo membro de uma igreja. Submeteu-se aos regulamentos e exigências de sua religião - seu maior desejo na vida era agradar a Deus. Trabalhou incansavelmente nos mutirões do bairro. Contribuiu com entidades filantrópicas. Em sua última jornada, os amigos, parentes e curiosos caminharam circunspetos pelas alamedas do cemitério. Despediam-se de um homem que não conseguiu viver.

José Fulano de Tal deveria ter aprendido que para viver, basta gostar, mas gostar mesmo, de poesia. No poema, a palavra ganha ritmo para sincronizar-se com o pulsar do universo. E nessa magnífica, porém silenciosa palpitação, ressoa a voz do Divino.

José Fulano de Tal deveria ter aprendido que para viver, basta achar tempo para ouvir música. Quando melodia e rima se acasalam, nasce a sublime sonoridade do Paraíso. O Pai Eterno sorri quando seus filhos se aquietam para escutar os artesãos dos salmos, dos noturnos, das toadas, dos réquiens, das cantatas, das óperas, das polcas, do samba, dos hinos, dos recitais, dos corais, do jazz, da bossa-nova.

José Fulano de Tal deveria ter aprendido que para viver, basta amar os livros. É prazeroso para Deus, ver os filhos transcendendo para mundos imaginários através da prosa, da narrativa. Os romances dissecam a alma humana, enaltecem a virtude, expõem a crueldade e quando não sofrem censura, descrevem a realidade crua da vida.

José Fulano de Tal deveria ter aprendido que para viver, basta transformar cada refeição em um ágape, cada aperto de mão em uma aliança e cada abraço em uma declaração de amor.

José Fulano de Tal deveria ter aprendido que para viver, basta deixar-se conduzir por um vento desatento, rumo ao horizonte inatingível; e esperar por um porvir insubstancial. Já que Deus gosta de prados selvagens e de matas sem cercas, viver é arriscar-se. Deus sabe desenhar o arco-íris com as gotas do ribeiro que despenca no precipício. Portanto, só vive quem não teme esvaecer.

José Fulano de Tal deveria ter aprendido que para viver, basta gostar de vinho, de doce de leite, de tapioca com manteiga, de filme de amor, de esporte, de meia hora de sono extra no feriado, de bolo de milho, de cafuné, de beijo, de viagem de férias com dois dias sobrando para descansar do descanso.

José Fulano de Tal deveria ter aprendido que para viver, basta chamar Deus de Pai ou de Mãe.


Ricardo Gondim.

Soli Deo Gloria.

domingo, 21 de setembro de 2008

Obediência

Bom é quando a palavra de Deus nos surpreende.
E surpreende não apenas pela grandeza em si, mas também porque a cada leitura e estudo descobrimos coisas novas, somos tocados de maneiras diferentes.

Em um domingo desses, em uma visita ao Pequeno Leão, lar para crianças desamparadas, a tia que ministrou a escola bíblica dominical trouxe a boa, velha e bem conhecida história de Jesus quando encontra Simão Pedro, que havia passado a noite toda tentando pescar, mas em vão, pois não conseguiu nenhum peixe.

Já tinha ouvido esta história diversas vezes, mas neste dia eu me toquei de uma coisa que não tinha percebido antes.

Na história, narrada no capíulo 5 do livro de Lucas, conta que Jesus, para sair do meio da multidão que o apertava, subiu em um barco, o barco de Simão Pedro, e pediu que se afastasse um pouco da borda, e dali pregava para a multidão.

Depois de ensinar as pessoas, Jesus pediu para Simão Pedro que fosse a alto mar e jogasse as redes ao mar, e Simão iniciou um diálogo que eu imagino mais ou menos assim:

- Mas Jesus, ficamos a noite toda fazendo isso e não pegamos nada.
- Simão, vai por mim, me obedeça.
- Olha Jesus, eu te disse, fiquei nessa a noite toda e o mar não está para peixes, mas beleza, vou te obedecer e vou jogar só porque o senhor está pedindo.

Simão Pedro em nenhum momento teve fé que aquilo traria resultados, está bem claro que fé foi algo que ele não teve. O que Simão Pedro teve naquele momento foi OBEDIÊNCIA.

Ao obedecer Jesus, e jogar as redes ao mar, Simão Pedro foi surpreendido com a quantidade enorme de peixes, que segundo a história, chegou a rasgar as redes e precisaram de ajuda para carregar tudo.

Quando eu ouvi essas palavras da tia que ensinava as crianças, eu me toquei que quando falta a fé, devemos dar lugar então a obediência.

Ao obedecer Jesus, certamente não nos decepcionaremos.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Leia a bíblia e faça oração se quiser crescer...

Cresci com uma música que dizia: "leia a bíblia e faça oração se quiser crescer".
http://particulasdagraca.blogspot.com/
Acontece que quando me ensinaram a ler a Bíblia, também me disseram que eu deveria ler repetindo os conceitos antigos por mais antiquados que parecessem. Assim, se existisse algum texto que não combinasse com o conhecimento atual, deveria ficar com os conceitos antigos e ignorar as discrepâncias entre o saber e o texto.
Chegaram a me afirmar o saber "moderno mundano", como uma armadilha do inimigo para desviar da fé. Lembro-me que o medo de perder a fé era tão grande, que não havia o incentivo para os estudos. Ouso afirmar que os estudiosos acusados de incrédulos, necessariamente não se desviaram de Deus, mas afastaram-se do antiquário religioso, pois perceberam as incoerências de uma teologia hermética.

No máximo, ao estudante da Bíblia seria permitido afirmar que o que estava escrito, não se tratava daquilo que estava escrito, mas de uma aparente contradição.
Por mais louco que pareça, fórmulas extraordinárias explicavam que apesar do autor registrar alguma coisa, não deveria se ler o que ele escreveu, mas sim o que a tradição mandava ler.
Assim, todas as vezes que encontrava na Bíblia que Deus se arrependeu, jamais deveria afirmar que ele voltara.
Não sei explicar direito isto, mas sei que, se a Bíblia é a palavra de Deus e uma pessoa não religiosa a lê pela primeira vez, logo em suas primeiras páginas terá certeza de que Deus mudou.
Mas como o dogmatismo religioso não permite fazer esta afirmação, pois tudo o que discorda dele é marginalizado à heresia, me pergunto se quem fala a verdade é a interpretação ou a Bíblia?
Se temos a Bíblia como palavra de Deus inspirada, somente uma que tenha comentários, comunica a voz de Deus?
A verdade é a Bíblia como está escrita ou as notas de rodapé?

Não me permito desconsiderar a ciência da interpretação Bíblica. Sei do valor da tradição, da teologia histórica, mas quero aprender a ler a Bíblia.
Pelas minhas retóricas dá para perceber, que meu jeito de ler foi profundamente transformado.
Não consigo olhar para o texto e ver sempre as mesmas coisas que a religião manda ver e nem tampouco me iludir com as incoerências entre o que leio e o que creio. Entre saber e texto.
Em diversos lugares da Bíblia me incomodava ver que estava escrito algo, porém conflitando com os conceitos herdados, não deveria considerar o que o texto dizia, mas tentar encontrar alguma coisa que possibilitasse mexer no texto e justificar o desatino.

Por exemplo em Jeremias 14:22 tem uma pergunta com uma resposta do profeta:
- "Podem os céus, por si mesmos, produzir chuvas copiosas? Somente tu o podes, SENHOR, nosso Deus!".

O que um meteorologista diria deste texto?
Que a Bíblia se engana, que o profeta mentiu ou ignorava leis da natureza ou que os crentes são ignorantes em acreditar em um livro assim?

Para validar a fé dentro dos conceitos antigos, tal qual um bom número de crentes, ao ler este texto eu precisaria ignorar o conhecimento científico e negar eventos naturais. Necessitaria continuar afirmando como um primitivo homem das cavernas, que as chuvas são produzidas e manipuladas pelas divindades.

Nesta compreensão, para fazer Deus favorável, minhas orações me tornaria em um índio batendo seus tambores na dança da chuva, reduzindo Deus em uma divindade como Tupã. Se necessitasse de uma intervenção heróica, ao orar me tornaria um guerreiro primitivo nórdico, tornando Deus semelhante ao Thor.

Quantas horas gastas em orações para alterar a natureza!
Como se não bastasse, todo o prejuízo causado ao planeta pela manipulação do meio-ambiente para o bem individual, ainda estaria considerando a possibilidade de Deus ajudar. Como um fanático beato insistiria com Deus para fazer sol em minhas praias e festas, chover nas minhas hortas e lançar tempestades contra meus desafetos.
De qualquer maneira Thomas Alva Edson, Evangelista Torricelli, Daniel Gabriel Fahrenheit, Galileu Galilei, Santorio de Santorio e outros, nos levaram a constatar que não há divindades manipulando as chuvas, mas estas ocorrem naturalmente e dentro de uma determinada lógica, por isso previsíveis, manipuláveis e atingem indistintamente a todos.

Talvez, você que lê este texto esteja se retorcendo, trazendo em sua mente diversas experiências com chuvas ou quem sabe, textos bíblicos para comprovar que estou errado. Não o julgo, pois é exatamente este o grande problema. Repetir sem refletir.

Lembra-se de quando a AIDS chegou ao patamar de epidemia, diversos crentes com a Bíblia em mão, aberta em Romanos 1 diziam ser castigo divino?
Hoje, com o vírus codificado, suas múltiplas ações catalogadas, ninguém precisa ir a uma igreja evangélica e nem ter fé para interromper com o castigo divino, basta tomar um coquetel famacológico e todo o efeito drástico do castigo é revertido. Dentro de pouco tempo, com a vacina em mãos, o que dizer dos profetas de Romanos 1?
Quantas pestes acometeram a população na história e pregadores relegando ao castigo divino através de textos Bíblicos adaptados, e hoje este "castigo" radicalmente eliminado por uma vacina?
Estaria Deus ficando sem saída diante do conhecimento humano?
Ou o seu poder ameaçado pela tecnologia?

Não quero mais ler a Bíblia obrigando-a a falar, mas quero que ela comunique o que deseja transmitir. Não quero apenas ler um texto, desejo ardentemente ouvir uma voz. Porque a Bíblia, além de um livro para ser lido, é uma mensagem a ser ouvida.

Sugiro que compreendamos a Bíblia como a Palavra de Deus, escrita em linguagem humana. Uma peça literária extraordinária, que lida dentro de seu próprio contexto e compreendido o nível de conhecimento e cultura de seus escritores, nos dará a voz de Deus clara e audível para hoje. A Bíblia não contraria o saber, mas este aplicado à leitura possibilita ouvir a mensagem mais maravilhosa do universo!

O que dizer do profeta?
Um homem cheio de fé que entregou inteiramente sua vida a Deus e com o pouco que seu meio possibilitava saber sobre o mundo, transcendeu em muito o seu próprio mundo ao reconhecer que há um só Deus e Senhor, Criador de céus e terra.

Eliel Batista

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A dúvida de mãos dadas à fé

A dúvida de mãos dadas à fé
Ricardo Gondim

- Texto de um debate acadêmico na Bienal do Livro 2008

Introdução.

Como sei o que sei? Nesta pergunta básica reside todo o problema da epistemologia. Um nó apertado. Este trabalho não pretende lidar com os fundamentos filosóficos do conhecimento, mas com a crise que o protestante brasileiro, e particularmente com a crise do evangélico, que esperneia quando se defronta com a dúvida.

Sinto-me desafiado a aliviar este nó epistemológico, porque o assunto me toca de perto. Como pastor evangélico, como pesquisador das Ciências da Religião e como cristão praticante, preciso entender o porquê do receio diante da possibilidade da dúvida.

É próprio de o sujeito religioso assegurar a sua convicção inabalável, a sua certeza absoluta e o seu acesso perfeito à verdade divina. Ele se considera tão convicto de que atingiu a realidade única, objetiva, real e concreta, que sai para fazer prosélitos. Admitir a remota possibilidade de não estar alinhado à verdade absoluta, constitui-se em uma fraqueza inadmissível para os demais praticantes de sua tradição religiosa.

O problema se torna agudo entre os evangélicos e protestantes que optaram pelo que Rubem Alves denominou de “Protestantismo da Reta Doutrina”. E precisamente os da reta doutrina levedam a precária produção literária e teológica dos evangélicos nacionais. Segundo Rubem Alves, os “Protestantes da Reta Doutrina privilegiam a concordância com uma série de formulações doutrinárias, tidas como expressões da verdade, e que devem ser afirmadas sem nenhuma sombra de dúvida, como condição para participação na comunidade eclesial”[1].

Esse grupo se firmou nos Estados Unidos no apogeu da modernidade, quando se questionava a legitimidade “científica” dos relatos bíblicos. Alguns teólogos calvinistas se apressaram em demonstrar que o cristianismo não era apenas racional, mas a única revelação de Deus aos homens. O teólogo Charles Hodge catalogou cinco ou seis fundamentos da fé cristã, para ele inegociáveis. E de seus primeiros tratados, nasceu um movimento que passou a ser conhecido como “fundamentalismo”.

Hodge afirmava:

“A tarefa do teólogo consiste não em buscar significado além das palavras, mas em organizar os claros ensinamentos das Escrituras num sistema de verdades gerais”[2].

Hodges propunha que “Deus inspirou cada uma das palavras da Bíblia; portanto, é preciso levá-las a sério e não distorcê-las com exegeses alegóricas ou simbólicas”[3].

Portanto, o termo fundamentalismo, hoje carregado de significados negativos, a princípio não passava de um esforço sincero de tornar os textos sagrados em “verdades factuais”. Os teólogos fundamentalistas cometiam, entretanto, o mesmo erro dos cientistas da natureza, os racionalistas que se ocupavam com a razão – com análise de dados, com fatos, fenômenos, operações, processos, energias, estruturas, evoluções”[4].

Hans Küng afirmou que caso os teólogos e filósofos queiram dialogar com a ciência natural, será necessário modéstia e autocrítica. Pois “muitos cientistas já chegaram a reconhecer que não podem oferecer verdades definitivas”[5].

Küng não mede palavras quando aborda a atitude do teólogo quanto à verdade: “Pois também eles, que profissionalmente estão empenhados na verdade da fé, não possuem de antemão esta verdade, nem dela dispõem de forma definitiva”[6].

A crise evangélica nacional e esperneia dentro da lógica fundamentalista. Segundo Prócoro Velasques Filho, em Introdução ao Protestantismo no Brasil (Edições Loyola, p. 126) o corte do protestantismo, os evangélicos brasileiros têm raízes no fundamentalismo norte americano, que se caracterizou precisamente por dois eixos principais: o milenarismo e a teologia da inerrância ou inspiração plenária da Bíblia. Para os teólogos originais do fundamentalismo, a “revelação de Deus só seria perfeita se fosse ‘isenta de erros, contradições, paradoxos e inconsistências’”.

Com esta característica de privilegiar a adesão dogmática à uma “verdade absoluta”, antecipo dois caminhos para os “Protestantes da Reta Doutrina”:

a) Acomodam-se em repetir os antigos dogmas, sem coragem para se repensarem, sem ousadia para fazer perguntas que os deixarão sem respostas, sem determinação de levar às últimas conseqüências suas deduções.

A repetição produz conforto. Os crentes estão sempre em busca de conforto quando vão às igrejas aos domingos. A repetição conforta porque ela confirma a imutabilidade da verdade. E na medida em que a verdade afirmada no momento é a verdade que alguém já está acostumado a ouvir, cria-se a certeza de ser-se senhor da verdade[7].

Acontece que a repetição também conduz ao enfado. A optar pela repetição de verdades bem assentadas e previamente cridas, o evangélico cria um ambiente de mesmice. E para sair da mesmice, precisa inventar ambientes emocionalmente carregados, para isso apela para os cânticos que eletrizem em nome de louvores, as emoções que o discurso não gera.

Antônio Gouvêa Mendonça, pesquisou os primórdios da evangelização brasileira e concluiu:

“Sabemos que os sermões eram conservasionistas e polêmicos; o pregador procurava apelar para a distinção entre a “verdade” e o “erro”, entre a nova mensagem e a religião dominante. O tom do sermão era dogmático e racionalista ao mesmo tempo; dogmático ao fundamentar-se nos dogmas comuns do cristianismo que deviam ser recuperados diante de uma melhor e mais verdadeira fundamentação escriturística, e racionalista ao procurar tecer o sermão numa lógica irrecusável. O objetivo era convencer o ouvinte e uma verdade contra outra. Mas o dogmatismo-epistemológico-polêmico nem sempre era suficiente para mover o ouvinte a uma mudança de atitudes; daí a necessidade de aliar ao sermão, já na maior parte das vezes dramático, cânticos apropriados para auxiliar a elevação do “tônus” emocional da reunião, formando ambiente favorável às decisões individuais (conversões)[8]

b) Recrudescem na intolerância, fecham-se em guetos, endurecem o controle criam “historiadores oficiais”, “teólogos chancelados”, “voltam os tribunais inquisitoriais” para caçar os que se atrevem caminhar até as fronteiras (Boaventura), os que saem dos paradigmas (Kuhn), os que desafiam os marcos categoriais (Juan Luis Segundo).

Atrevo-me a sugerir que o movimento evangélico brasileiro reconheça sua incapacidade de abarcar “a verdade”, que abandone o pressuposto de que vai codificar a correta doutrina de Deus, admita que o conhecimento absoluto de Deus está para além da capacidade humana. Na verdade, ninguém tem o acurado conhecimento de Deus; caso fosse possível, como alguém já afirmou, “eu seria ele”.

O teólogo espanhol, Andrés Torres Queiruga propõe que a teologia abra um diálogo até com os ateus:

O ateísmo, em sua própria negatividade, pode ser uma grande oportunidade para a fé; pode até ser uma medida da Providência para que os cristãos, assumindo a crítica atéia, compreendam que Deus é sempre muito maior. – “Deus sempre maior” – do que as idéias que nós fazemos dele. A crítica dos ateus pode ajudar-nos a romper os esquemas em que tantas vezes encadeamos e deformamos a idéia de Deus[9].

Para sair do impasse de que a fé precisa de verdades absolutas e a possibilidade de dúvida. Proponho que a cosmovisão protestante evangélica re-signifique a fé. Sugiro, portanto que:

  1. A verdade seja tratada como “boa-fé”.

No excelente “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, André Comte-Sponville coloca a “boa-fé” como um dos grandes valores da humanidade. O filósofo francês, depois de lutar entre os termos veracidade, veridicidade e autenticidade, optou finalmente por “boa-fé”. Para ele, boa-fé é um fato, portanto, aomesmo tempo uma realidade psicológica e uma virtude, ou um traço moral. Como fato, boa-fé, é “a conformidade dos atos e das palavras com a vida interior, ou desta, consigo mesma”. Como virtude, é o amor ou respeito à verdade. Ter boa-fé é dizer o que acredita, mesmo que esteja enganado, como acreditar no que diz. É crença fiel, e fidelidade no que se crê.

A verdade deixaria, então de ser a concordância a um postulado ou a uma asseveração previamente estudada e concordada, para ser uma integridade. A boa-fé se opõe, portanto, ao dogmatismo. E quem opta pela verdade em nome do dogmatismo e não como uma “boa-fé”, vira intolerante.

“Tomam sua fé por um saber. Por ela, estão dispostos a morrer e a matar. Eles não duvidam. Eles não hesitam. Eles conhecem a Verdade e o Bem. Para que necessitam de ciências? Para que necessitam de democracia? Tudo está escrito no Livro. Basta crer e obedecer. Entre Darwin e o Gênesis, entre os direitos do homem e a Sharia, entre os direitos dos povos e a Tora, eles escolheram de que lado estão, de uma por todas. Eles estão do lado de Deus.. Como poderiam estar errados? Por que deveriam crer em outra coisa? Fundamentalismo. Obscurantismo. Terrorismo. Eles querem fazer-se anjos; fazem-se de bestas ou de tiranos. Tomam-se por Cavaleiros do Apocalipse. São os janízaros do absoluto, que eles pretendem possuir com exclusividade e que reduzem à dimensão, singularmente estreita, de sua boa consciência. São prisioneiros da sua própria fé, escravos de Deus ou do que consideram ser – sem provas – sua Palavra ou sua Lei[10].

  1. A verdade como história, como narrativa, como metáfora.

Jonathan Sacks diz que o judaísmo é repleto de histórias, segundo o dito judaico, “Deus criou o homem porque gosta de histórias”). A própria Bíblia é um dos exemplos fundamentais da verdade como história, ao contrário do modelo ocidental conhecido – a história como sistema[11]. O saber conceitual não é o mesmo do saber proverbial. O conhecimento absoluto não está na mesma categoria do conhecimento intuitivo. A percepção das entranhas não é a mesma da razão.

  1. A verdade como compromisso com a vida.

De acordo com Michel de Foucault a “verdade” como conceito absoluto precisa do anteparo do poder. A verdade que prevalece não é necessariamente “a” verdade, mas aquela que as instituições dominantes impõem:

... a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro[12].

A ortodoxia se estabelece como o piso da ortopraxia. E a ortopraxia é o que anima a ortodoxia. Portanto, segundo David Bosch, na esteira do iluminismo, as igrejas antigamente “se arrogavam do direito de determinar qual era a verdade ‘objetiva’ da Bíblia e de dirigir a aplicação dessa verdade intemporal ao cotidiano dos crentes”[13]. Bosch afirma que Schleiermacher “foi o pioneiro em perceber que toda teologia era influenciada, se não determinada, pelo contexto em que evoluíra”[14].

Dessa forma, Bosch chega à conclusão que “ a reivindicação universal da hermenêutica da linguagem precisa ser contestada por uma hermenêutica da ação, porque fazer é mais importante que saber ou falar. Nas escrituras são bem-aventuradas as pessoas que agem. E eu concordo com ele que, “não existe, em verdade, conhecimento exceto na própria ação, no processo de transformar o mundo através da participação na história’”[15]

  1. A verdade como uma aproximação do sublime.

Deslumbramento, ou fascínio pelo numinoso, o mistério tremendo, como queria Rudolf Otto.

O rabino Abraham Joshua Heschel dizia que os gregos aprenderam para compreender. Os hebreus aprenderam para reverenciar. O homem moderno aprende para fazer uso de seu conhecimento[16]. E sugere um outro nível de conhecimento, que leve ao espanto, ao deslumbramento, ao maravilhamento. A verdade seria, portanto, um encontro com o sublime.

Heschel define sublime como aquilo que podemos ver e não conseguimos definir. É a alusão silenciosa das coisas a um significado maior do que elas mesmas. É o que todas as coisas definitivas simbolizam; “o silêncio inveterado do mundo que permanece imune à curiosidade e às indagações, como uma folhagem perdida no anoitecer”. O sublime é o que nossas palavras, fórmulas e categorias não podem jamais alcançar.

Para o rabino, o sublime não está, necessariamente, relacionado com o que é vasto e esmagador por suas dimensões. “O sublime pode ser percebido em cada grão de areia, em cada gota de água. Todas as flores no verão, todos os flocos de neve no inverno podem despertar em nós uma sensação de maravilhamento, que é nossa resposta ao sublime”[17]. Por isso, a verdade está onde a mente não necessariamente consegue elucidar.

Porque a verdade é sublime, porque o real está no imponderável, porque a realidade não se limita aos contornos da racionalidade, nasce a poesia e minha verdade foi expressa no meu poema “Sobre Deus”:

Não sei explicar as razões da minha fé. Não sei dizer os porquês da minha devoção. Sinto-me inadequado para convencer os indiferentes a desejaram a pitada do sal que tempera o meu viver. Tudo o que sei sobre o Divino é provisório. Minhas convicções vacilam. Todas as certezas são, decididamente, vagas.

Sei tão somente que Ele se tornou a minha meta, o meu norte, a minha nostalgia, o meu horizonte, o meu atracadouro. Empenhei o futuro por seguir os seus passos invisíveis. No dia em que o chamei de Senhor, a extensão do meu meridiano se alongou, os retalhos do meu mapa se encaixaram, caíram os tapumes da minha estrada, o ponteiro da minha bússola se imantou.

Sei tão somente que Ele se fez residente no campus dos meus pensamentos. Presente nos vôos da minha imaginação, virou um doce ponto de interrogação. Causa de toda inquietação, tornou-se a fonte de minha clarividência.

Sei tão somente que Ele se desfraldou como bandeira sobre os meus ombros. E o cilício, as purgações, os sacrifícios, tudo foi substituído por desassombro. No porão da tortura, nos suplícios culposos, achei um ambulatório. Os livros contábeis onde se registravam meus erros foram rasgados. As punições, suspensas. Já não fujo dele como de um Átila. Eu agora o chamo de Clemente.

Sei tão somente que Ele ardeu o delicado filamento que acende a luz dos meus olhos. Ele foi o mourão que marcou o outeiro de minha alma como um jardim. Ele é o badalo que dobra o sino do meu coração; o alforje onde guardo os acertos e desacertos do meu destino.

Sei tão somente que Ele me fascina quando refrata luz. Dele vem o encarnado que tinge minha face com o rubor do sol. Seu amarelo me brinda com o açafrão do mundo do mistério; e o roxo me colore de púrpura real. Seu branco é lunar e me prateia. Seu preto me conduz até o nanquim celestial. Por sua causa, espelho o azul dos oceanos mais longínquos.

O que dizer de Deus? Tão pouco! Espero, tão somente, que o meu espanto expresse o tamanho da minha reverência.

Soli Deo Gloria.



[1] Alves, Rubem – Religião e Repressão – Edições Loyola, São Paulo, 2005. p.44.

[2] Armstrong, Karen – Em nome de Deus – Companhia das Letras, São Paulo, 2005, p.168.

[3] Idem, p.168.

[4] Küng, Hans – O princípio de todas as coisas – Editora Vozes, São Paulo, 2007, p.62.

[5] Idem, p.62.

[6] Idem, p.62.

[7] Alves, Rubem – Religião e Repressão, Editor Loyola, São Paulo, p. 138.

[8] Mendonça, Antônio Gouvêa – O Celeste Porvir, a Inserção do Protestantismo no Brasil – Edições Paulinas, 1984, p.208.

[9]Queiruga, Andrés Torres – Creio em Deus Pai – Editora Paulus, São Paulo, 2005, p.21.

[10] Comte-Sponville, André – O espírito do ateísmo – Martins Fontes, São Paulo, 2007, p.32.

[11] Sacks, Jonathan – “Para curar um mundo fraturado – a ética da responsabilidade, Editora Sefer, São Paulo, p. 23.

[12] Foucault, Michel – Microfísica do Poder, Edições Graal, São Paulo, 2007, p.12.

[13] Bosch, David – Missão Transformadora – Mudanças de Pradigma na Teologia da Missão, Editora Sinodal, Rio G. do Sul, 2002, p.504.

[14]Idem, p.505.

[15] Idem, p.508.

[16] Heschel, Abraham Joshua – Deus em busca do homem – Editora Arx, São Paulo, p.43.

[17] Idem, p. 49.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Como o ar que eu respiro

Algumas vezes eu me encontro em uma situação que me deprime. Me sinto como se estivesse “longe” de Deus. Não que eu esteja desviado, andando em caminhos tortos, ao contrário, mas mesmo assim me sinto a milhas de distância de Deus.

A correria do dia-a-dia, as preocupações terrenas, entre outros fatores acabam tomando todo o tempo e quando percebo, já estou nesta situação.

Compartilhando este meu sentimento com um grande amigo, ele citou um conto, que segue abaixo, e eu achei bárbaro. Deve ser bastante conhecido, mas eu não conhecia e veio bem a calhar.

Deus é como o ar, nós precisamos Dele para viver, sem Ele não sobrevivemos, mas só nos demos conta disso quando sentimos falta.

Como seria bom se buscássemos a Deus sempre, como quem busca o ar após passar alguns instantes embaixo d’água.

Mas também, como é bom saber, que mesmo nós não nos dando conta disso, Deus continua a nos envolver e cuidar de nós.

Fiquem na PAZ!
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Certa ocasião, um discípulo que procurava seguir o caminho espiritual, dirigiu-se ao seu orientador, dizendo-lhe:

Mestre! Embora o senhor nos tenha ensinado que Deus está sempre à nossa disposição, não consigo encontrá-lo, por mais que O procure.

O mestre então levou o discípulo até um lago e o convidou a entrarem no lago.

Ao chegarem a determinado ponto, o mestre segurou o discípulo pelos ombros e mergulhou sua cabeça, sem deixar que ele a levantasse.

O discípulo começou a debater-se, tentando inutilmente sair daquela situação.

Quando o mestre percebeu que ele estava perdendo as forças, soltou-o e ele procurou imediatamente respirar, buscando o ar com desespero.

Perguntou-lhe o mestre: que foi, meu filho?

Ar, mestre! Ar! Sem respirar, eu morreria.

Respondeu-lhe então o mestre:

No dia em que você procurar Deus com o mesmo empenho com que buscou o ar para viver, você O encontrará.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Em nome de Jesus

Em nome de Jesus

Por Paulo Brabo

O drama da narrativa bíblica reflete, em muitos sentidos, um árduo esforço divino para eliminar da mente humana o conceito de magia: a noção de que, através de fórmulas mágicas ou procedimentos estabelecidos, Deus ou o universo podem ser manipulados para atingirmos o objetivo que temos em mente.

Desde a primeira página, um dos traços mais distintivos do Deus das Escrituras é que ele não faz barganhas. Não há ritual ou palavra mágica que possa torcer o seu braço a fazer o que queremos. Se Deus concede o que homens lhe pedem é reflexo da sua magnanimidade e da intimidade de relacionamento que ele propõe, jamais da habilidade humana em manipulá-lo.

Essa obsessão divina em apagar da experiência humana a idéia da magia explica muito nas filigranas dos mandamentos e da Lei de Moisés. Israel não deve ter “outros deuses além de mim”, entre outras coisas, porque os deuses dos outros povos são entidades manipuláveis – aceitam suborno, dobram-se diante do ritual certo, vendem-se por um sacrifício, negociam, especulam e cedem a barganhas. Deus sabe que não é assim que o seu universo funciona, e não quer que seu povo adote essa visão distorcida do mundo. Pela mesma razão ele deita rigorosas proibições contra feitiçaria, amuletos e toda espécie de adivinhação.

Os cristãos reincidem constantemente na magia.

O próprio regime de sacrifícios não pressupõe qualquer controle mágico do mundo; as prescrições deixam muito claro que trata-se de provisão graciosa para a purificação dos pecados, e não de instrumento de manipulação. Deus faz alianças e assina contratos que beneficiam outros além de si mesmo, mas não distribui senhas ou abracadabras. No mundo dele você pode pedir, mas não pode obter o que quer por mágica, isto é, pela força e pela argúcia.

O que o Primeiro Testamento elucida o Novo escancara: Jesus passeia pelo mundo demolindo a noção essencialmente mágica de favor prestado e retribuição. Deus – explica o Filho do Homem – não distingue méritos e não rebaixa-se a troca de favores, mas “faz que o seu sol se levante sobre maus e bons”. Seus filhos não devem recorrer a repetitivas fórmulas mágicas em suas orações, “porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes de vós lho pedirdes”. Não é o pecado nem o bom comportamento que explicam as desgraças ou as felicidades, porque o mundo não funciona pela lógica simplista e retributiva da magia (”Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem padecido estas coisas?”).

O universo – Jesus explica – funciona pela lógica singular da graça, não pela lógica humana da magia e da retribuição. Esta é, essencialmente, a natureza da boa nova do reino: Deus não pode ser manipulado a fazer o bem que já está disposto a fazer em primeiro lugar.

Porém a magia tem um brilho sedutor, e os cristãos resvalam periodicamente nela: recorremos cheios de esperança a óleos milagrosos, profetas curandeiros, caixinhas oraculares de versículos, bibliomancia, quarentenas de oração e copos d’água. Mesmo a obsessão cristã com o domingo é essencialmente mágica, quando o Apóstolo alerta a não cairmos na velha armadilha de “dias de festa, ou lua nova, ou sábados”, coisas que “têm aparência de sabedoria e de rigor ascético (…), mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne”.

O emblema final e mais eloqüente da capitulação cristã a uma visão mágica do mundo talvez esteja no abuso, popular à náusea entre evangélicos e pentecostais, da expressão “em [o] nome de Jesus”. Orar e pedir “em nome de Jesus”, conforme prescrito no Novo Testamento, era provavelmente para ser entendido como se lê; seria orar “como Jesus oraria”, ou pedir “imbuído do espírito de Jesus”. Com o tempo, o enfoque migrou do espírito para a letra; transferiu-se da pessoa e da postura de Jesus para as palavras, imbuídas supostamente de autoridade e poderes sobrenaturais (de forma semelhante ao Shem Hamphoras da tradição judaica medieval). O conteúdo reduziu-se a fórmula, abracadabra que abre – esperamos – todas as portas.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

No country for old men

No country for old men.
Ricardo Gondim

Dei o título para este texto em inglês de propósito. Quero comentar o filme “Onde os fracos não têm vez”, ganhador do Oscar de 2008 – produzido pelos irmãos Coen. Como não considerei a tradução apropriada, preferi o título original que descreve melhor a trama dessa produção americana.

Confesso que não gostei quando assisti ao filme. Saí do cinema com a sensação de que vira mais uma apologia de violência, parecida a tantas outras produções hollywoodianas, exageradas nas cenas explícitas de morte e de vingança. Porém, com o passar do tempo, quanto mais medito no filme, mais percebo sua mensagem metafórica.

O enredo é simples. Um acerto de contas entre traficantes num canto escondido do Texas promove uma chacina em que todos morrem. Pela mala de dólares que sobrou, começa uma nova caça de gatos e ratos, envolvendo polícia, traficantes, mexicanos e pessoas comuns. Um xerife prestes a se aposentar, portanto, um “old man”, se vê obrigado a trabalhar no caso, mas seu cansaço é notório. Sem pique diante da maldade, o xerife se revela uma figura tão amargurada que em determinado momento desabafa: “Eu sempre achei que quando ficasse velho, Deus entraria em minha vida de alguma forma. Mas ele não o fez. Eu não o culpo. Se eu fosse ele teria a mesma opinião sobre mim que ele tem”. O xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones) simplesmente não tem mais forças para enfrentar a maldade que se mostra encarnada, renitente, perene.

Lembrei-me de que o xerife do filme representa todos os que lutam pelo bem e se sentem impotentes diante do avanço da maldade. A luta da polícia, dos investigadores, dos promotores é sem fim. Todo instante alguém tenta fazer o mal. Parece inesgotável a capacidade humana de inventar, imaginar, perversidades. Pedófilos se multiplicam e usam a internet para seduzir crianças. Traficantes se organizam em cartéis. Servidores públicos desviam verbas destinadas à compra de ambulâncias e merenda escolar. Recentemente, o mundo se horrorizou com um pai que por décadas escravizou e abusou sexualmente a própria filha.

As organizações que advogam o direito das crianças, os ecologistas que defendem o meio-ambiente, os juizes, os filantropos, os políticos do bem e o clero, semelhantes ao xerife, por mais que batalhem, acabam com a sensação de nunca terem sucesso algum.

Quase diariamente lido com pastores evangélicos esgotados. A luta deles também parece inglória e seus esforços pífios. Diante da avalancha de maldade que se avoluma, com recursos financeiros minguados e com dificuldade para mobilizar as pessoas para o trabalho voluntário, eles se unem aos outros que se sentem deprimidos.

Não me atrevo, de forma simplista, resolver esses dilemas. Minha intuição, entretanto, me diz que há caminhos alternativos que podem suavizar a desesperança que se espalhou.
É possível abandonar a lógica dos grandes projetos, das megalomanias, dos messianismos. As antigas propostas globais de mudança precisam ser redimensionadas (downsized) para pequenas iniciativas. Antes de querer mudar o planeta, devemos cuidar dos quintais. Para enfrentar o aquecimento global, mudar hábitos cotidianos, como poupar água com banhos rápidos, não abusar do automóvel e, sempre que possível, usar transporte público e até bicicleta. Na política, participar dos conselhos de bairro, envolver-se no chamado Terceiro Setor e nas pequenas ações de desenvolvimento comunitário.

Há uma historinha interessante, bastante conhecida. Um homem caminhava e ao mesmo tempo devolvia para o mar peixes que a maré baixa deixou agonizando na praia. Alguém o repreendeu ao afirmar que seu esforço era inútil e tolo; não faria a menor diferença salvar tão poucos peixes. Ao que respondeu: “Realmente, mas para os que se salvaram, fiz toda diferença do mundo”. Oskar Schindler não acabou com o holocausto, mas fez toda diferença para aqueles que resgatou dos fornos crematórios; Martin Luther King não viu o fim do racismo, mas deu dignidade para os que se inspiraram em sua vida e morte; Madre Teresa de Calcutá não resolveu a miséria da Índia, mas todos que morreram em sua clínica se sentiram amados.

O antídoto para o desânimo pós-moderno é concentrar os esforços nas pessoas e não nos empreendimentos. Os projetos devem servir homens e mulheres, nunca o contrário. As pessoas não podem ser consumidas no fortalecimento das instituições. No caso das igrejas, nenhuma programação, nenhum evento, pode tornar-se um fim em si mesmo. Eles estão a serviço dos indivíduos e só adquirem qualquer sentido quando promovem a vida.

Jesus de Nazaré amou pessoas, viveu numa pequena vila e não diluiu seus esforços com mega eventos. Ele se deu integralmente a doze homens, acolheu os excluídos e nunca se impressionou com o aceno do estrelato. Sua morte transformou-se no mais contundente triunfo. Assim, antes de terminar os dias desiludido, cínico, sem alma; antes de sentir-se derrotado pelo constante avanço da maldade e onipresente perversidade humana, todos precisam aprender a contentar-se com atos singelos, com iniciativas despretensiosas, com feitos simples.

Soli Deo Gloria.