sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Avesso

Hoje acordei diferente, me sentindo estranho, algo me incomodava.

Acordei do avesso.

Descobri ao me olhar no espelho do banheiro. Levei um susto.
-Mas o que é isso? perguntei para o nada.

O avesso é estranho, é esquisito.
O avesso é muito avesso ao que não é avesso.

Pensei em gritar, tentei no desespero voltar ao normal, sem sucesso.
Fiquei pensando no que poderia ter me virado do avesso, será que foi algo que comi? Será que dei um espirro muito forte?

Após muito tempo trancado no banheiro, o medo foi diminuindo e tive que encarar a nova realidade, estava do avesso e pelo que tudo indicava assim permaneceria até não sei quando.

Busquei argumentos que me servissem de consolo e me dessem coragem.

Me lembrei que o normal também não me agrada.

Lembrei que todo dia, todo santo dia eu me chocava ao ver como as pessoas normais são todas parecidas, todas tristemente iguais e uns mais iguais que os outros.

Então em um ato de coragem resolvi encarar e ficar do avesso.

Saí de casa após o café amargo de sempre pela manhã.

Logo ao pisar às ruas, vi que meu dia não seria dos mais tranquilos.
As pessoas me olhavam, alguns encaravam por instantes e desviavam o olhar com uma careta.

Eu causava asco, nojo, repulsa. Era nítido o distanciamento das pessoas, até dos mais chegados.

"O que fazer" Pensei. "Nada". concluí e segui com minha vida do avesso, sendo diferente a tudo aquilo que diziam ser normal.

Engraçado que ao ficar do avesso, comecei a perceber coisas que antes não notava. Comecei a ver que o mundo era muito mais do que a rotina do trabalho, do trânsito, dos relacionamentos superficiais.

Estar do avesso despertou em mim um sentimento de querer ir mais fundo, de observar melhor os detalhezinhos que dão tanta graça à vida.

A ter relacionamentos mais verdadeiros, a amar na mais plena e pura forma de amor.

Por estar do avesso podia perceber o julgamento instantâneo e insensato das pessoas, e assim deixei de lado os julgamentos que eu fazia a todo instante sem notar.

Pude perceber que o mendigo sujo e dado como doido pelos 'normais' tinha uma vida bonita e muita paz no coração, mais do que muitos fantasiados de trabalhadores honestos e felizes.

Pobres fantasias, um dia se tornarão velhas e rasgadas.

Havia sim, outros do avesso. Encontrei alguns poucos deles, trocamos olhares e não contivemos um sorriso.

O sabor das coisas também pareciam diferentes. Na verdade não diferentes mas mais intensos. Saboreei um prato de arroz e feijão com muito gosto.

Estar do avesso ainda causava certo incômodo, não há como negar, poucos me encaravam sem fazer caretas, menos ainda se atreviam a trocar um diálogo comigo.

Não é fácil caminhar sozinho, mas por outro lado, só pude perceber que tudo àquilo que eu buscava filosoficamente, eu só pude alcançar estando do avesso.

Negando ser mais um, ser comum, ser normal.

Triste foi ver que mesmo aqueles que se diziam diferentes, não aguentaram me ver do avesso. Eram certinhos demais para aplicar o próprio discurso.

Na volta para casa, tentando organizar as tantas emoções vividas naquele intenso dia, voltei a me perguntar "o que será que me deixou assim?". "Terei que procurar um médico?".

Ou será que acordei do avesso porque Deus atendeu minhas orações?

Fui dormir à quela noite com uma dúvida e um anseio. Como será que vou acordar na manhã seguinte?

Ainda do avesso ou normal? O que eu prefiro, estar avesso ou ser comum?

Dormi.

Evandro L! Melo

2 comentários:

williamdroops disse...

Muito bom !!

NN Acessórios disse...

Amei Evandro...até me fez lembrar de uma leitura da juventude - METAMORFOSE - Frans Kafka...muito bom seu texto.
Beijinhos e até...