Quando ela, a morte, apareceu em seu espelho, numa manhã de segunda-feira, fria e chuvosa, lhe pediu a vida, ele sem susto e sequer com palpitação no coração, encarou o espelho, a morte, e com desdém voltou-se a torneira aberta e ao processo de abrir a pasta de dente, colocar na escova, molhar rapidamente e levar à boca. Tudo tão automático que seria capaz de fazer aquilo dormindo, ou até, morto.
Irritada, a morte não se conformava, tão acostumada com o pavor que provocava quando aparecia, ao desespero de pessoas tentando se agarrar à vida. Mesmo aquelas que passara a vida toda sem viver. Uma ponta de frustração lhe veio à tona e irritada ela interveio:
- Ei, estou aqui, sou sua morte, vim lhe buscar.
Sem parar a escovação, no modo automático, ele levanta o dorso, encara o espelho com desdém e se volta ao seu processo. Cospe, leva água à boca, gargareja, cospe, lava o rosto e enfim encara pra valer o espelho.
- Sim, você é a morte. E?
- E? Venho para te buscar.
- Pff, não me venha com essa.
Não parecia preocupado, realmente não estava. Não como aqueles que de tão cínicos, mesmo em momentos de pânico sabem disfarçar e manter a cara mórbida de desdém. Fato era que ele pouco se importava.
Saiu do banheiro, sem dizer nada, deixando a morte com cara de tonta. Situação ímpar na vida dela. Ei, morte tem vida?! Continuemos.
Entrou em seu quarto, já sentindo o aroma do seu café sendo passado na cafeteira elétrica, programada para passar o café sempre no mesmo horário. Cumprindo seu ritual diário, roboticamente, foi retirando do guarda roupa calça, camisa, gravata, já sabendo que qualquer peça que pegasse combinaria, seu guarda roupa era uniforme, as roupas todas parecidas, assim, dizia, não precisava perder tempo se arrumando.
Atônita, ela desistiu de fazer cena de terror e decidiu ir conversar com o rapaz.
- Tenho que te levar. Para isso que eu vim, te acompanho a vida toda e hoje é o dia em que tenho que te levar.
- Não, não é.
- Olha, de nada adianta sua tentativa de se apegar à vida...
- Hein?! Olha tenho pressa, tenho que sair, pegar 2 horas de trânsito e chegar no trabalho. Vamos tomar café e conversamos por lá.
- É...humm, certo. Vamos.
Antes de sair, fica alguns instantes se encarando no espelho com cara de que não está entendendo nada. - Mas, que diabos?!
Como hipnotizado, enche sua caneca com café, pouco açúcar, nada para comer, apenas o café amargo, que era tomado todos os dias enquanto ele lia as notícias em seu celular.
- Tem café na cafeteira, sirva-se. - Disse quando ela chegou.
Se servindo, ainda não acreditando na situação em que se encontrava, ela foi dizendo:
- Amigo, hum, obrigado pelo café, mas olha, realmente eu vim lhe buscar. É assim que as coisas funcionam.
- Assim como? Perguntou sem tirar os olhos do celular.
- Assim, você ganha a vida, eu e ela te acompanhamos durante um tempo, ela tomando a frente, e chega o dia em que eu tomo o lugar dela, assim.
- Essa é a questão. Você sequer se importa com seu trabalho. Eu abdiquei da vida há muito tempo, sequer me lembro do último dia em que a senti, há tempos seu trabalho deveria ter sido feito e você não percebeu. Que bela morte você é. Tem como trocar?
- Você é muito insolente, sabe o que eu sou capaz de...
- De que? De me matar? Uhhh que medo. Acha que me importo?
- Você já me acompanha faz tempo, se não percebeu o problema está contigo e não comigo. Vida é que eu não carrego mais, faz tempo.
- Sugiro mantermos esta relação, você me acompanha sem me incomodar e eu não lhe incomodo. Temos um trato? O que acha?
Após alguns minutos de goles de café amargo, ela quebra o silêncio.
- Trato feito.
Iniciou-se uma relação de amizade. Todos os dias tomavam café e mantinham a rotina, que era qualquer coisa, menos vida.
Evandro L! Melo
Irritada, a morte não se conformava, tão acostumada com o pavor que provocava quando aparecia, ao desespero de pessoas tentando se agarrar à vida. Mesmo aquelas que passara a vida toda sem viver. Uma ponta de frustração lhe veio à tona e irritada ela interveio:
- Ei, estou aqui, sou sua morte, vim lhe buscar.
Sem parar a escovação, no modo automático, ele levanta o dorso, encara o espelho com desdém e se volta ao seu processo. Cospe, leva água à boca, gargareja, cospe, lava o rosto e enfim encara pra valer o espelho.
- Sim, você é a morte. E?
- E? Venho para te buscar.
- Pff, não me venha com essa.
Não parecia preocupado, realmente não estava. Não como aqueles que de tão cínicos, mesmo em momentos de pânico sabem disfarçar e manter a cara mórbida de desdém. Fato era que ele pouco se importava.
Saiu do banheiro, sem dizer nada, deixando a morte com cara de tonta. Situação ímpar na vida dela. Ei, morte tem vida?! Continuemos.
Entrou em seu quarto, já sentindo o aroma do seu café sendo passado na cafeteira elétrica, programada para passar o café sempre no mesmo horário. Cumprindo seu ritual diário, roboticamente, foi retirando do guarda roupa calça, camisa, gravata, já sabendo que qualquer peça que pegasse combinaria, seu guarda roupa era uniforme, as roupas todas parecidas, assim, dizia, não precisava perder tempo se arrumando.
Atônita, ela desistiu de fazer cena de terror e decidiu ir conversar com o rapaz.
- Tenho que te levar. Para isso que eu vim, te acompanho a vida toda e hoje é o dia em que tenho que te levar.
- Não, não é.
- Olha, de nada adianta sua tentativa de se apegar à vida...
- Hein?! Olha tenho pressa, tenho que sair, pegar 2 horas de trânsito e chegar no trabalho. Vamos tomar café e conversamos por lá.
- É...humm, certo. Vamos.
Antes de sair, fica alguns instantes se encarando no espelho com cara de que não está entendendo nada. - Mas, que diabos?!
Como hipnotizado, enche sua caneca com café, pouco açúcar, nada para comer, apenas o café amargo, que era tomado todos os dias enquanto ele lia as notícias em seu celular.
- Tem café na cafeteira, sirva-se. - Disse quando ela chegou.
Se servindo, ainda não acreditando na situação em que se encontrava, ela foi dizendo:
- Amigo, hum, obrigado pelo café, mas olha, realmente eu vim lhe buscar. É assim que as coisas funcionam.
- Assim como? Perguntou sem tirar os olhos do celular.
- Assim, você ganha a vida, eu e ela te acompanhamos durante um tempo, ela tomando a frente, e chega o dia em que eu tomo o lugar dela, assim.
- Essa é a questão. Você sequer se importa com seu trabalho. Eu abdiquei da vida há muito tempo, sequer me lembro do último dia em que a senti, há tempos seu trabalho deveria ter sido feito e você não percebeu. Que bela morte você é. Tem como trocar?
- Você é muito insolente, sabe o que eu sou capaz de...
- De que? De me matar? Uhhh que medo. Acha que me importo?
- Você já me acompanha faz tempo, se não percebeu o problema está contigo e não comigo. Vida é que eu não carrego mais, faz tempo.
- Sugiro mantermos esta relação, você me acompanha sem me incomodar e eu não lhe incomodo. Temos um trato? O que acha?
Após alguns minutos de goles de café amargo, ela quebra o silêncio.
- Trato feito.
Iniciou-se uma relação de amizade. Todos os dias tomavam café e mantinham a rotina, que era qualquer coisa, menos vida.
Evandro L! Melo
2 comentários:
Cara, que vida horrível deve ser essa, nem medo da morte se tem, graças a Deus temos vida, e mesmo com todas as lutas, vida em abundancia.
Parabéns pelo blog e esse texto é profundo, mesmo.
Quantos de nós já nos acostumamos com coisas e situações, que quando tínhamos vida, vida verdadeira, dizíamos que jamais aceitaríamos? É assim que se morre aos poucos, um pouquinho a cada dia, até que chegue ao ponto em que viver e morrer seja praticamente a mesma coisa. Espero que a morte me pegue de surpresa.
Belo texto, parabéns.
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