quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O menino sumiu

- O menino sumiu. O menino sumiu.

Berrava o mendigo, dado como louco pelos demais cidadãos de bem.

Chegaram a lhe perguntar, quem era o menino ao qual ele se referia, mas ele só berrava. "O menino sumiu".

****

O menino nasceu trazendo grande alegria. Eram tempos difíceis, mas com ele vinha uma ponta de esperança.

A alegria era tanta que logo muitas pessoas se juntaram para vê-lo, chegar pertinho, sentir o perfume, observar seu sorriso, trazer-lhe alguns mimos.

Ah como era bom estar perto de alguém como aquele menino, estar perto dele trazia felicidade plena.

- Um momento como este não pode passar sem uma festa de comemoração. - Disse o bigodudo comerciante local.

Todos se animaram e logo começaram os preparativos.

O Pai da criança ficou muito animado de início, ficou contente, pois seu menino já chegara fazendo as pessoas sorrirem, o que não ocorria com facilidade. Eram tempos difíceis.

Começaram então os preparativos. Cada um ajudava doando o que tinha, doavam e colaboravam com o que tinham e não com o que lhes sobrava, tamanha era a alegria.

O dono da quitanda escolheu as melhores verduras, frutas, legumes, tudo do bom e do melhor.

O açougueiro separou logo as melhores carnes, de vaca, carneiro e até de porco.

Sem pestanejar o dono da vinicultura ofertou o mais puro e nobre vinho. Aqueles que ele vinha separando para uma ocasião especial, que ele nem sabia qual, mas dizia ele "a ocasião chegará" e chegou.

E assim foi. Os que trabalhavam com madeira ajudaram com as mesas, cadeiras. Os que trabalhavam com metal doaram talheres, panelas.

Os talentosos artistas cuidavam da decoração, da música, nada passava a seus olhos, tudo era cuidadosamente preparado para ficar belo, o mais belo possível às mãos humanas.

***

- Olha só aquilo. Quem é esse maluco?

- Sei não, deve ter ficado doido de tanto beber.

- um vagabundo, é o que ele é...

- Pobre coitado desse mendigo...

- Trabalhar que é bom nada... Vagabundo.

As pessoas que iam e vinham para seus trabalhos, estudos, tocando e rolando suas vidas, olhavam, apontavam e comentavam sobre o mendigo, que gritava a todo pulmão.

- O menino sumiu!

***

- Uma festa como esta não pode ter gente mal arrumada! - Disse num repente o fanfarrão. "Vamos nos arrumar minha gente" - finalizou.

E todos logo concordaram como quem concorda com o óbvio. Foram logo em busca de se embelezarem, se produzirem, se arrumarem.

As mulheres cuidando de si mesmas, dos filhos e dos maridos, é claro, pois estes por mais que tentavam, não tinham muito jeito pra coisa.

- Passavam horas e horas e porque não dizer, dias e dias, se arrumando e olhando para si, procurando detalhes, buscando uma perfeição inexistente.

E embora passassem tanto tempo cuidando de si mesmos, nunca estavam contentes, queriam sempre mais e mais e mais.

A perfeição de fato era inexistente, porém, alguns ficavam realmente bem arrumados. Lindas meninas parecendo bonecas de cera, rapazes garbosos parecendo anúncios de revista, mas nunca estavam contentes e a busca pela beleza não tinha fim.

Mesmo quando chegavam a um resultado satisfatório, pensavam como estariam os demais, e mentalmente se comparavam uns aos outros e a comparação gerava medo e iniciavam novamente a busca pela beleza.

****

O menino sumiu. Agora não era só a voz do mendigo que afirmava esta triste nota, mas também pichações nos muros da cidade.

Assim como a voz do mendigo, as pichações não diziam mais nada além da frase "o menino sumiu".

Todos atribuíam as pichações ao mendigo, e de fato devia ser dele mesmo.

****

O dia da festa chegou. Quase tudo preparado, mas como em toda grande festa, toda festa deste tamanho, ainda faltavam alguns detalhes para resolver.

Muitos corriam para finalizar a tempo o preparo para aquela que seria a maior festa de todos os tempos.

E tanto que correram que alguns até esqueceram porque estavam correndo, mas não podiam parar de correr, a festa tem que acontecer, afinal.

Tudo preparado, tudo colocado em seu lugar. "UAU que lindo que ficou"- muitos disseram.

E foi um dia espetacular. Todos se banquetearam, comeram muito,a té demais, beberam muito, até demais.

Abraçavam-se, trocavam felicitações.

Ah que alegria que foi aquele momento.

- E no ano que vem tem mais minha gente! - disse o comerciante, já um pouco alterado pelo vinho.

- VIVA! - Responderam todos.

***

Tentaram calar o mendigo. Levaram-no preso. O internaram em um hospício. Fizeram exames clínicos. Mas nada havia de errado com ele, era apenas um mendigo que perdera a noção do bom senso e dos bons costumes. Diagnosticaram.

***

Alguns anos se passaram e a cada ano a festa crescia, ficava mais bela, mais enfeitada, mesas mais fartas, mesmo que sobrasse muita coisa pois não davam conta de consumir o que produziam.

Em uma destas festas, em meio à correria para o preparo de mais uma grande festa, que seria ainda maior e melhor do que as anteriores, uma criança andava em meio ao alvoroço.

Curioso, o menino observava tudo e a todos, sem entender o motivo de tanto desespero e desgaste para algo que deveria ser para trazer alegria.

Tentava, sem sucesso, conversar com os que ali estavam, mas ou era ignorado ou era logo repreendido, "Menino, não vê que estamos trabalhando?", outros correndo enquanto olhavam assustados o tempo se esvaindo em um relógio de bolso, falavam a ele, embora parecesse que era ao vento, "é tarde, é tarde, é tarde até que arde, aiai meu deus, alô adeus, é tarde é tarde é tarde".

Ao menino, melancólico, só restou assistir o insano vai e vem de pessoas, como baratas tontas.

****

Os gritos não paravam e os registros escritos continuavam nos muros.

"O menino sumiu"

****

- Cortem esta árvore, é a mais alta e bela de todo o condado. - Disse um dos comerciantes, um dos que mais se esforçava ano a ano para que a festa continuasse a crescer.

- Enfeitem-na com o que for de mais belo - completou o artesão, sempre muito detalhista e cuidadoso com tudo.

- Vamos preparar o maior banquete de todos os tempos.

- Mas na festa passada sobrou muita comida.

- Não importa, este ano precisa ser melhor, não podemos regredir.

- É verdade, faz sentido!

Dialogaram as rechonchudas cozinheiras.

E assim foi, e foi e foi e é.

Um dia, o menino, que nesta altura já não era mais menino, a não ser em sua alma, que sempre foi e será de menino, conseguiu a atenção de todos e perguntou:

- A que mesmo estamos comemorando? Qual o motivo desta festa?

O silêncio foi ensurdecedor. Todos se olhavam, pasmos, pois se esqueceram do porquê tudo aquilo era preparado há anos. Alguns minutos se passaram enquanto só se ouvia os grilos e as cigarras.

- Um brinde a todo mundo e a esta linda festa e que no próximo ano venha uma melhor! - Interrompeu o silêncio, o comerciante, sempre ele.

- VIVA! - responderam todos, enquanto levantavam seus copos.

E assim, como se não houvesse tido nenhuma pergunta, não houve nenhuma resposta e todos brindavam e se felicitavam, como sempre fora.

***

As pessoas já não aguentavam mais a amolação do mendigo, que insistia em seus gritos a todos e a ninguém. "O menino sumiu! O menino sumiu!"

Tiveram uma idéia. Uma macabra idéia de matar o mendigo.

- Mas isso não pode.

- Porque não, é só um mendigo.

- Sim, mas matá-lo?

- só assim ele para com esses gritos que não fazem sentido.

- Mas faz sentido matá-lo por isso?

- Claro, você não acha?

- É, claro, faz sentido.

O mendigo foi morto.

Calaram-se os gritos de "O menino sumiu", e assim todas as pessoas de bem puderam curtir suas festanças com banquetes, muita comida, bebida, enfeites e presentes, sem a incômoda voz do mendigo doido.

Só restaram os muros, com as pichações já desbotadas pelo tempo, "O menino sumiu".

***

Feliz Natal.

Texto: Evandro L! Melo

Ilustração: Felipe Lopes

3 comentários:

Anonymous disse...

Parabéns Evandro.
Texto mais do que atual e real.
Eduardo e Bete

NN Acessórios disse...

Amado Evandro...não sei se me repito mas...amigo, seus textos me deixam extremamente feliz. Adoro perceber pessoas cheias de "entusiasmo" e isso é bom.
Obrigada por compartilhar conosco suas meditações...valeu.
Tudo que tem a ver com Jesus é REAL, incrível.
Beijinhos

Gerson Borges disse...

Sabe o que me toca, Evandro? Não é apenas o teu talento, mas o modo como vc coloca a verdade - indiretamente, subversivamente. Eu não sei onde vc vai parar não...parabéns: o teu texto é um primor.

Saúde, força e...VAMOS ACHAR O MENINO!!!

seu amigo GERSON